Yan Boechat
Mossul

Amina Abdulwahab (nome fictício), 31, abandonou o niqab quando voltou a Mossul, há cerca de quatro meses.

No lugar da vestimenta negra que deixava apenas seus olhos à vista (uma imposição do Estado Islâmico a todas as mulheres daqui), usa um reluzente véu amarelo.

Já mãe de oito crianças, ela escolheu o adereço colorido para tentar provar que, apesar de ter sido casada por 13 anos com um homem que se filiou ao EI, jamais se envolveu com a facção.

Abdulwahab tem medo de ser vista como uma "mujahida", uma mulher que, além de ser casada com um integrante do Estado Islâmico, pegou em armas ou participou das práticas criminosas do grupo terrorista.

"A verdade é que meu marido nunca foi um membro de verdade, nunca matou ninguém, nunca lutou contra ninguém. Apenas prestava serviços a eles. O que podíamos fazer? Precisávamos sobreviver", diz ela.

No bairro em que Abdulwahab vive, residem outras 150 famílias de integrantes da facção —a maior concentração delas. Al Tanaq tem servido, para as forças de segurança do Iraque, como laboratório de reinserção social dos milhares de mulheres e crianças ligadas à revelia ao grupo terrorista.

"Se formos prender todos que tiveram alguma ligação com o EI, serão quase todos os moradores desta cidade", afirma um oficial da inteligência do Exército iraquiano.

O retorno dessas famílias a Mossul tem sido lento. A maior parte continua espalhada por campos de refugiados nos arredores da cidade —mais de 300 mil pessoas continuam a viver neles.

Em alguns campos, esses clãs precisam ser isolados para não sofrer agressões. As famílias consideradas culpadas por crimes são mandadas para Bagdá, onde aguardam julgamento.

Amina Abdulwahab aparece com um véu amarelo segurando um bebê no colo e ao lado de outras quatro crianças: duas meninas vestidas com uma túnica rosa e dois meninos, sendo que um deles dá água em uma cumbuca ao outro
Amina Abdulwahab garante que o marido jamais pegou em armas pelo Estado Islâmico, apenas trabalhava com o grupo para sustentar a família. Os vizinhos dizem outra coisa e o entregaram para a polícia - Yan Boechat/Folhapress

SOLDADO À REVELIA

As negativas de Abdulwahab sobre as atividades de seu marido são comuns. Quase todos afirmam que cônjuges, filhos e irmãos foram obrigados a se juntar ao grupo ou só prestaram serviços.

"Ele trabalhava em uma usina de tratamento de água, nem sabia atirar. Levaram-no há quase um ano, e nunca mais ouvimos falar dele", conta ela.

Vizinhos e outros parentes dão versão distinta. "Ele tinha um fuzil, ameaçava quem o desafiava e, quando as batalhas começaram, lutou ao lado de combatentes estrangeiros", afirma um vizinho.

"Fiz de tudo para evitar que se juntasse a eles. Não consegui, fizeram uma lavagem cerebral nele", reconhece, por fim, Mohamed Abdulwahab, o pai do combatente desaparecido.

Em uma sociedade em que as ligações familiares são mais importantes para a sobrevivência do que as forças de mediação e controle do Estado, o destino das mulheres dos ex-combatentes do Estado Islâmico repousa nas mãos de líderes tribais.

Em Al Tanak, quem decide sobre inocência ou culpa é Ahmed Hamid, chefe comunitário ligado aos serviços inteligência do Exército.

"Somos quase todos da mesma tribo, estamos aqui há gerações, sabemos quem é quem, quem fez o quê, como e quando", diz.

Toda vez que uma família tenta regressar de um campo de refugiados, Hamid é consultado. "Se a mulher fez coisas ruins quando seu marido estava com o EI ou se se aproveitou disso para maltratar os outros, não permito o retorno", diz ele.

 

SEM AJUDA

Ao mesmo tempo em que atua como juiz, Hamid encarna uma espécie de assistente social. Em uma cidade em que as mulheres são praticamente proibidas de trabalhar, não ter um marido é quase sinônimo de miséria.

"Essas pessoas são vítimas, e ninguém as ajuda. As ONGs não vêm para cá", afirma. "Muita gente se uniu à facção por dinheiro, que era farto para quem pegasse em armas."

Foi o que fez o marido de Ahlam Mustafa (nome fictício). Por US$ 400 (R$ 1.329), tornou-se soldado do Estado Islâmico. No início, monitorava as dezenas de pontos de controle em Mossul. Com a guerra, virou combatente.

Mustafa não o vê há quase dois anos. Acredita que o marido foi morto durante os combates para retomar a cidade.

"Fui contra, ameacei abandoná-lo, mas ele era teimoso", conta, ao lado das filhas, já adolescentes. "As crianças sentem falta dele, eu também, e não temos nada. Nossos parentes não falam mais conosco, vivemos com a ajuda dos vizinhos. No começo, achamos que o Estado Islâmico nos traria liberdade, mas ganhamos apenas morte e destruição."


Estrangeiras são condenadas à pena de morte

Enquanto Bagdá tende a considerar as iraquianas como vítimas de guerra, as estrangeiras que se uniram a combatentes da facção Estado Islâmico são vistas como criminosas e estão sendo julgadas em uma corte especial. Quase todas são sentenciadas à pena de morte por enforcamento.

Atualmente, cerca de 550 mulheres de 13 países de Europa, Ásia, África e Américas estão presas sob a acusação de ser esposas de extremistas. Com elas estão cerca de 900 crianças menores de 14 anos. Os mais velhos foram enviados a prisões de adultos.

Os julgamentos têm ocorrido quase que mensalmente; praticamente todas as mulheres receberam a sentença máxima. A ONG Human Rights Watch acusa o governo iraquiano de realizar julgamentos baseados apenas no fato de as mulheres terem sido presas em áreas dominadas pelo Estado Islâmico.

Bagdá, no entanto, afirma que uma longa investigação é realizada antes de elas enfrentarem o tribunal. Além disso, afirma o governo, há um alentado processo de apelação e, até agora, nenhuma mulher foi enforcada.

O destino das crianças que permanecem com suas mães na prisão ainda é uma incógnita. O governo quer que os países de origem das presas fiquem responsáveis pelos filhos dos combatentes do Estado Islâmico. Até agora, nenhum acordo foi feito.

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