De Henrique 8º a Meghan Markle, Igreja Anglicana evoluiu sobre divórcio

Lapsos da família real refletiram os da sociedade britânica e ajudaram igreja a se modernizar

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William Booth Karla Adam
Londres | Washington Post

Quando o príncipe Harry e Meghan Markle se postarem diante do altar na Capela de São Jorge no Castelo de Windsor, um refúgio da monarquia britânica há mil anos, o arcebispo de Cantuária [Canterbury em inglês] dará o nó com os votos do Livro de Oração Comum que dizem "... para te amar e cuidar de ti, até que a morte nos separe".

Não muito tempo atrás, esse casamento —com esse serviço, esse oficiante e nesse lugar— teria sido impossível.

Não porque Markle é uma americana e uma plebeia, casando-se com um príncipe que hoje é o sexto na linha sucessória ao trono britânico. E não porque a atriz é birracial, foi criada no credo episcopal e frequentou uma escola católica em Los Angeles.

Não, tal serviço teria recebido a oposição da hierarquia da Igreja Anglicana porque Markle é divorciada e seu ex-marido, o produtor de Hollywood Trevor Engelson, continua vivo.

"Teria sido um duplo não", disse Andrew Goddard, um sacerdote anglicano em St. James the Less, em Londres, e uma autoridade na história das atitudes cristãs em relação ao casamento.

Apesar de a Igreja Anglicana ter sido fundada por um rei que queria se livrar da rainha, a família real britânica e a religião que ela comanda se debatem com o divórcio e o recasamento há séculos.

"É somente no final do século 20 que o divórcio se torna comum e o estigma começa a cair", disse Goddard, acrescentando que ainda há tradicionalistas na Igreja Anglicana que acreditam que "casamento significa para sempre", ponto final.

A cerimônia de Harry e Meghan no sábado (19) será o primeiro casamento real de um parceiro divorciado a ocorrer com o abraço amoroso da embolorada igreja inglesa.

Em vez de manifestar oposição, ou negociar um compromisso, o arcebispo de Cantuária manifestou sua alegria pelas núpcias.

"Estou muito feliz que o príncipe Harry e a senhora Markle tenham decidido fazer seus votos perante Deus", disse o reverendo-mor Justin Welby.

O correspondente real-chefe do jornal Daily Mail deu a notícia de que Welby batizou Markle usando água santa do rio Jordão, em uma "cerimônia secreta" em março na Capela Real, com Harry ao lado dela. Seguiu-se uma confirmação silenciosa —o que permite que Markle receba a comunhão. Este é um momento histórico para uma instituição britânica fundamental.

A igreja e a coroa, em pontos variados, resistiram à sua chegada. Mas a Casa de Windsor também gerou um século de manchetes —e momentos instrutivos— sobre adultério, separação, divórcio e recasamento.

Por mais embaraçosos que tenham sido seus escândalos, os lapsos da família real refletiram os da sociedade britânica como um todo, e de alguma forma ajudaram a liderança da igreja a se modernizar.

Os americanos tendem a esquecer —os britânicos nem tanto— que a rainha Elizabeth 2ª não apenas é a soberana, como a "governadora suprema" de uma religião estatal oficial, a Igreja da Inglaterra, ou Anglicana.

Em sua coroação em 1953, autoridades eclesiásticas a envolveram no Manto Imperial e colocaram em sua mão o Orbe do Soberano, trazido até ela do altar na Abadia de Westminster uma cruz sobre um globo que representa, segundo o site The Crown Chronicles, "o domínio de Cristo sobre o mundo, pois o Monarca é o representante de Deus na Terra".

Seu papel pode ser principalmente cerimonial, mas está longe de insignificante. A rainha ainda aprova as nomeações de cada bispo em sua igreja. Ela não é divina, não é uma papisa britânica, mas os muitos títulos de Elizabeth incluem "Defensora da Fé", que lhe foi transmitido desde Henrique 8º. Henrique, como você deve lembrar, teve seis esposas. Como diz o ditado: uma morreu, uma sobreviveu, duas descasadas, duas decapitadas.

Quando ele rompeu com o papa e se declarou chefe de uma nova igreja em 1533, foi porque queria "anular" seu primeiro casamento com Catarina de Aragão, que não conseguira produzir um herdeiro homem. (Os restos mortais de Henrique estão na Capela de São Jorge, bem abaixo dos pés de Harry e Meghan, juntamente com Jane Seymour, a única que lhe deu um filho legítimo.) O que era permitido a Henrique, entretanto, não servia para qualquer pessoa, inclusive, ou especialmente, para outros membros da realeza.

Oliver O'Donovan, um sacerdote-acadêmico que ensinou em Oxford e Edimburgo, ofereceu café e biscoitos e um tutorial de uma hora sobre divórcio em sua residência na Escócia.

O'Donovan explicou que a Igreja Anglicana foi muito contrária ao divórcio da Idade Média até o século 19. Indagado sobre o que os casais britânicos com diferenças irreconciliáveis faziam na época, ele levantou uma sobrancelha e disse: "Imagino que amantes e veneno".

 

Os casais que desejem se divorciar formalmente precisam de um Ato do Parlamento. Isso já foi um jogo para os ricos. Em seu ensaio "The Heartbreaking History of Divorce" (A lamentável história do divórcio), na revista Smithsonian, a historiadora Amanda Foreman relata que antes de 1857 e da aprovação de novas leis sobre o fim do casamento somente 324 casais solicitaram com sucesso o divórcio —e apenas quatro casos foram iniciados por mulheres.

Mesmo depois que o divórcio foi legalizado, o recasamento permaneceu um assunto espinhoso. Em 1936, Eduardo 8º, um príncipe popular e notório playboy, abdicou do trono quando sua proposta de casamento com Wallis Simpson, uma americana duas vezes divorciada, não pôde ser reconciliada com seu papel como chefe da Igreja Anglicana.

O irmão de Eduardo, Jorge 6º, ascendeu, e foi seguido por sua filha Elizabeth.

A rainha é uma cristã devota. É também um modelo de longevidade matrimonial, casada há 70 anos. Ela tentou firmemente evitar os ecos do escândalo de seu tio.

Em 1953, sem querer que a considerassem oposta ao divórcio, ela manteve a aprovação da união desejada entre sua irmã, a princesa Margaret, e o capitão Peter Townsend, que era divorciado.

Elizabeth mais tarde arranjou um esquema pelo qual Margaret pôde renunciar a seu lugar na linha sucessória, assim evitando a necessidade de a rainha cortá-la. A Igreja Anglicana não quis oficiar o casamento —Margaret se casou em um cartório em Londres. Afinal, Margaret dispensou Townsend (apesar de ela ter se casado e também se divorciado posteriormente).

Foi só em 2002 que o órgão governador conservador da Igreja da Inglaterra, um sínodo composto por clérigos, bispos e laicos, aceitou —após três tentativas fracassadas que remontam aos anos 1960— que o divórcio é uma triste realidade da idade moderna e permitiu que seus sacerdotes oferecessem segundos e até terceiros "novos casamentos" em "casos excepcionais" a membros divorciados cujos ex-cônjuges estavam vivos. O "excepcional" hoje virou rotina.

Os índices de divórcio no Reino Unido são mais ou menos iguais aos da Europa e dos EUA. O Departamento Nacional de Estatísticas diz que 40% dos casamentos na Inglaterra e em Gales acabam em divórcio, embora o índice tenha diminuído de seu pico em 1992. (Por quê? Principalmente porque há mais solteiros e mais casais que vivem juntos sem se casar.)

Três dos quatro filhos da rainha Elizabeth se divorciaram: a princesa Anne, em 1992. O príncipe Andrew, em maio de 1996 (embora segundo rumores ele e Sarah Ferguson continuem muito, muito próximos). E no mesmo ano, após uma série de infidelidades, exposição nos tabloides, gravações vazadas, biografias não autorizadas e separação, o príncipe Charles e a princesa Diana finalmente se divorciaram, com a bênção da rainha (ou insistência, segundo aliados de Diana).

Anne e Charles voltaram a se casar, mas não no estilo que será concedido a Harry e ​Meghan. Em 1992, Anne se casou com o segundo marido, o comandante da Marinha britânica Timothy J. H. Laurence, em um serviço privado diante de 30 convidados na Igreja Crathie, perto do Castelo Real de Balmoral, na Escócia. Note-se que Elizabeth não é a chefe da igreja dos escoceses.

Em 2005, Charles se casou com sua antiga namorada, Camilla Parker Bowles, também divorciada. Eles fizeram o juramento em um serviço civil e depois receberam uma bênção do arcebispo da Igreja Anglicana.

Robert Lacey, um biógrafo real, disse que o divórcio hoje não é a crise que já foi, mesmo para a família real "totêmica, idealizada" que no passado devia ser "a última a se render".

Como evidência, Lacey aponta que os tabloides britânicos obcecados pela realeza em geral deixaram de lado o divórcio de Meghan: "Você pode ver pela reação de nossos jornais mais populares e criadores de problemas que continua sendo um mistério por que o casamento de Markle com Engelson terminou como terminou —ninguém está escavando muito fundo".

"A monarquia muda com a época", disse Dickie Arbiter, o ex-secretário de imprensa da rainha. "O fato de Harry estar se casando com uma divorciada que tem um cônjuge vivo, que é birracial, cujos pais são divorciados, é apenas o modo como as coisas avançaram.

"Ele acrescentou, como questão prática: "Você também tem de admitir que Harry é o sexto na linhagem sucessória, por isso está muito distante da ideia de um dia ser rei" —e governador supremo da Igreja Anglicana.

O'Donovan, que esteve envolvido no esboço das novas regras da igreja sobre o recasamento em 2002, disse achar que agora os anglicanos acertaram: "A igreja defende o casamento. É um compromisso solene, para toda a vida. Esses são os votos, mas..."Ele cita a Casa dos Bispos, que alguns casamentos fracassam, não por acaso ou acidente, mas como "fruto da falta de amor e de cuidado", e que para que uma pessoa se case de novo na igreja deve "questionar a si mesma honestamente" e chegar a um entendimento maduro de por que ocorreu a separação.

"A ideia é que é uma oportunidade de crescimento", disse o sacerdote, e não para explicações superficiais, com "nós simplesmente nos afastamos".

Mark Burkill, vigário na Christ Church em Leyton e líder de um movimento evangélico na Igreja Anglicana, está entre os avessos.

"Nunca em meus 34 anos de ministério recasei uma pessoa divorciada na igreja. Quando as pessoas me procuraram desejando isso, expliquei que quero manter o compromisso vitalício envolvido no casamento e que é muito difícil avaliar adequadamente casos individuais", disse ele.

Em vez disso, ele oferece um serviço de bênção a um casamento depois do registro em cartório. Burkill disse que os pedidos de casamento religioso em sua paróquia no centro de Londres "diminuíram enormemente ao longo dos anos. Hoje acho que quero me concentrar mais em incentivar os que vivem juntos a se casar!"

O príncipe Harry e Meghan Markle estão entre os que coabitavam —em seu caso, em Nottingham Cottage, no terreno do Palácio de Kensington.

O arcebispo de Cantuária disse que tem aconselhado e rezado com o casal, e que todas as exigências foram cumpridas para lançar mais esse matrimônio.

Ele disse à ITV News: "Ao contrário de casamentos recentes, não devo deixar a aliança cair. E não devo esquecer de colocar os votos na ordem certa, como fiz no ensaio do casamento de um de meus filhos".

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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