Descrição de chapéu Venezuela

Êxodo de venezuelanos transforma cidade fronteiriça na Colômbia

Comércio, crime e falta de esperança florescem em Cúcuta, por onde entram centenas de milhares de pessoas

SYLVIA COLOMBO
Cúcuta (Colômbia) e Buenos Aires

“Voltem, não ficou nada lá, meu país acabou”, gritava a quem vinha no contrafluxo um venezuelano de cabelos e longa barba brancos. Lento e trôpego, ele puxava um carrinho de mão com duas malas e olhava a placa “Bem-vindo à Colômbia” como quem vê a linha de chegada de uma maratona.

De fato, a sensação é compatível. A ponte Simón Bolívar, que cruza o rio Táchira e liga as fronteiriças Cúcuta (Colômbia) e San Antonio (Venezuela), tornou-se um funil onde desemboca boa parte dos venezuelanos que, com poucos pertences e muitas esperanças, tentam escapar da ditadura de Nicolás Maduro e da crise humanitária.

Hoje, há 1 milhão de venezuelanos que deixaram o país para tentar a vida na Colômbia, segundo dados oficiais.

“Uns 30% dos que cruzam todos os dias são população fronteiriça, que mora de um lado e estuda ou trabalha do outro. Todo o resto é gente fugindo. Você vê pela quantidade de malas, pelas idades, pelo ar de desespero. É muito doloroso ver isso diariamente”, diz o agente de fronteira colombiano Willy Ortiz, 32.

Ele aponta para uma senhora, em cadeira de rodas, empurrada por um rapaz e uma moça mais jovens, ambos com pesadas mochilas nas costas.

“Eu vim comprar fraldas e um pouco de comida, mas volto hoje mesmo”, diz Franco Maldonado, 23, com um bebê no colo. “Minha mulher trabalha durante o dia, tive de trazer nossa filha”, justifica. 

“É mais lento, tenho que tomar cuidado para que ela não tome muito sol na cabeça, para que não se canse. Mas não posso deixar o bebê sozinho em casa”, relata Maldonado, que diz cruzar a ponte duas vezes por semana para comprar coisas necessárias para a família. “Do lado de lá já não tem mais nada.”

As histórias de quem chega são uma mais dilacerante que a outra. “Alguns cruzam sem nada e agarram o primeiro trabalho que se oferece aqui. Outros vêm com algo de dinheiro para comprar uma passagem para outras cidades ou para ir ao Peru, ao Chile ou a outros países”, conta Ortiz.

A conversa com a reportagem é interrompida porque um rapaz de jeans, camiseta e uma pequena mochila que pede uma informação ao oficial traz um papel sulfite na mão. “Alguém vendeu isso para você?”, pergunta Ortiz. O rapaz: “Sim, me disseram que com isso eu podia entrar, porque não tenho passaporte”. Ele mostra a cédula de identidade venezuelana puída.

Ortiz, com calma, põe a mão nos seus ombros: “Você foi enganado. Isso é um formulário para pedir um documento de entrada antigo, da época em que a Venezuela era parte da Comunidade Andina, mas seu comandante [Hugo] Chávez tirou seu país dela, então isso não serve para nada”.

O rapaz verte lágrimas. Ortiz pede que se acalme e o encaminha a outra fila longa, paralela, de casos como o dele. 

“Nenhuma entrada está restrita, mas há um registro, um controle. Quem entra sem documentos recebe um provisório, mas é uma situação que está ficando mais grave”, resume o agente, apontando o enorme fluxo de gente que chega. A população fronteiriça tem um documento específico que permite ir e vir —muitos têm dupla nacionalidade.

A Folha cruzou a ponte nos dois sentidos conversando com os venezuelanos que chegavam —para ficar ou fazer compras— e os que voltavam após realizar um trâmite bancário ou receber atendimento em algum hospital de Cúcuta.

Muita gente cruza a fronteira para obter dinheiro venezuelano na Colômbia, já que em seu país as cédulas rareiam. Em geral, essas pessoas buscam casas de câmbio ou agências de transferência monetária como a Western Union, que entregam o dinheiro enviado por venezuelanos no exterior. 

Essa verba chega em dólares ou euros e é trocada num mercado negro em Cúcuta mesmo. “Quero guardar moeda estrangeira, mas na Venezuela preciso de bolívares para comprar comida, pagar o transporte, então tenho que trocar aqui”, conta a aposentada Amelia, 64, cujo filho manda dinheiro da Espanha.

Na tarde de quarta-feira (6), a agência da Western Union no centro de Cúcuta tinha uma fila que dava a volta no quarteirão. O dia era abafado, o calor chegava a 38ºC. 

“Se você vem pra cá, vende o que for em pesos, consegue trocar por bolívares e volta de noite para casa, tem dinheiro para a semana inteira”, diz um venezuelano que vende abacates no semáforo. “Eu moro em San Cristóbal, mas o dinheiro que a gente ganha para trabalhar lá não é suficiente.”

O funil da ponte Simón Bolívar dá para um mercado livre chamado de La Parada. Os venezuelanos encontram ali colombianos dispostos a  vender o que pedirem: água, frutas, passagens de ônibus, estadias em casas de família. E a comprar deles o que trazem. Por exemplo, cabelos.

“Cabelo? O senhor está comprando cabelo?”, pergunta a reportagem. “Eu não, só encaminho”, responde o homem que tapa a cara para se esconder do fotógrafo. E onde se corta o cabelo que ele compra? “Ali com as negras” (sic). Num canto da ponte, debaixo da sombra de algumas árvores, estão enfileiradas duas linhas de trabalho intenso. 

A primeira é a das mulheres que cortam os cabelos das venezuelanas. Há um supervisor, que pelo volume de cabelo de cada “vendedora”, decide quanto será pago. 

“Pelo seu, 50 mil pesos [R$ 65]”, diz a uma garota com o cabelo até o ombro. “A média é essa, mas, se chegam umas com cabelo na cintura, podem levar até 300 mil pesos [R$ 390]”, conta o rapaz, que não quer se identificar nem indicar para onde vão os tufos adquiridos a cada dia. 

A fileira da frente é a de mulheres que organizam as cabeleiras. Fazem tranças, perucas ou selecionam uma parte para implantes. “Tão bonitos, não? O cabelo das venezuelanas? Não é à toa que ganham tantos concursos de miss”, diz, também esquivando-se de ser fotografada e dar o nome, uma das “cabeleireiras”.

Ela trança o que acabara de cortar de uma jovem que, com o dinheiro, comprou passagem para Medellín, onde mora sua irmã. “Cabelo cresce”, disse a garota ao se levantar após o corte, com seu riso caribenho, encaminhando-se para a fila dos ônibus.

Esse movimento de cidade comercial em Cúcuta, porém, se transforma quando chega a noite. Poucos saem às ruas por medo de assaltos e porque ali têm casa alguns chefes dos bandos de ex-paramilitares e das bacrim (bandas criminales, as quadrilhas locais).

Os hotéis recomendam que os viajantes comam em um shopping ou se alimentem no restaurante do hotel. Não há mesmo opção de restaurantes ou padarias além disso. Numa caminhada por volta das 22h, já se vê uma Cúcuta silenciosa, com grupos de venezuelanos buscando lugar para dormir. 

Alguns escolhem a entrada do shopping, outros, atrás das colunas de algum edifício antigo. “As praças a gente evita, porque passa a polícia migratória e às vezes já acordamos no ônibus cruzando de volta para a Venezuela”, conta um dos andarilhos. Quem tem um carrinho de vender fruta ou sorvete se recosta sobre ele e dorme ali mesmo.

A situação em Cúcuta é de uma triste inversão histórica. O intenso fluxo que hoje se vê desde a Venezuela para a Colômbia é o contrário do que foi durante mais de 50 anos.

Nos anos mais terríveis da guerra às drogas (1980-1990) e dos enfrentamentos das guerrilhas com o Exército e os paramilitares, Cúcuta era o ponto de fuga de colombianos que escapavam da violência, instalando-se na pacífica e então pujante Venezuela. Hoje, é a linha de chegada.

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