Instituições criadas por Mandela resistiram a 'teste de estresse' democrático

Guinada democrática em Angola e Zimbábue surge como realização tardia de promessa do sul-africano

Cinco livretos brancos com uma foto de Mandela em preto-e-branco aparecem cobrindo a cabeça de algumas pessoas na plateia.
Espectadores usam livreto do evento de homenagem ao ex-presidente da África do Sul Nelson Mandela para se protegerem do sol no estádio Wanderers, em Joanesburgo - Marco Longari/AFP
Mathias Alencastro

Como todos os legados, o de Nelson Mandela também chegou a ser questionado.

Quando seu sucessor Jacob Zuma (2009-18) ameaçou a jovem democracia da África do Sul com a captura do aparelho do Estado, Achille Mbembe, o mais proeminente pensador africano vivo, chegou a ponderar se a reconciliação e a justiça inspiradas por Mandela realmente haviam conduzido os sul-africanos à tão almejada liberdade.

As instituições erguidas por Mandela, no entanto, não só resistiram como venceram o desafio imposto por Zuma.

Desmentindo o mantra de que a hegemonia política do Congresso Nacional Africano (CNA) era incompatível com a formação de uma sociedade civil autônoma e de uma burocracia estatal independente, foram justamente os ativistas, jornalistas e funcionários públicos, devidamente protegidos pela Constituição, que forçaram a destituição, democrática e consensual, do presidente corrupto.

Até ontem tida como inimaginável, a ainda incipiente, mas não menos notável, guinada democrática nos demais países da África austral surge como uma realização tardia da promessa de uma nova era proferida por Mandela há quase três décadas.

As mudanças em curso em Angola e Zimbábue sugerem que, afinal, a CNA pode não ser o único movimento de luta armada anticolonial a liderar uma transição para uma democracia multipartidária.

Se o legado de Mandela continua vigoroso na África, o mesmo não pode ser dito sobre o resto do mundo. Lech Walesa, sindicalista responsável pela demolição do regime soviético na Polônia, desespera-se a testemunhar a subversão das instituições democráticas que ele ajudou a construir pelo regime de Jaroslaw Kaczynski.

Shimon Peres, que Barack Obama já comparou a Mandela, deixou Israel nas mãos de um governo ultranacionalista que achou propício debater a lei que sedimenta a separação entre judeus e árabes em pleno centenário do ícone da luta antiapartheid.

A degradação recente do ideário de que a democracia liberal seria o principal instrumento de emancipação dos povos confere uma tonalidade particular às celebrações. É simbólico o fato de que o principal discurso tenha ficado a cargo de Obama, primeiro afrodescendente a liderar sua nação.

Em seu mandato, Obama era acusado de instrumentalizar o legado do sul-africano para fins políticos, ao mesmo tempo em que desvirtuava seus princípios. A dramaticidade da alternativa parece ter sido subestimada.

Entre o vasto projeto histórico, imperfeito e ofegante de extensão da democracia, dos direitos e da liberdade defendido por Obama e a arbitrariedade autoritária ensejada por Trump, todos os minimamente identificados com os valores de Mandela já fizeram sua escolha.

O líder teve uma relação breve e equivocada com o Brasil. Informado por leituras obsoletas e por conselheiros ignorantes da realidade local, chegou a Brasília no começo dos anos 1990 persuadido de estar em uma jovem democracia multirracial.

Os encontros com o movimento negro, embora reduzidos ao mínimo protocolar pelas autoridades brasileiras, bastaram para que ele reconsiderasse sua posição.

Por outro lado, muito além da realidade politica, o legado de Mandela sobrevive na utopia de realização de um ideal radicalmente democrático e verdadeiramente multirracial. Num Brasil em pleno revisionismo histriônico, no qual o governo trata com carinho a ditadura militar e em que um candidato popular tem como única agenda programática a reabilitação daquela, a reflexão em torno da atualidade de Mandela serve para reforçar a cada vez mais tênue fronteira entre civilização e barbárie.


Vida de Mandela

1918 Nasce na localidade de Mvezo, na atual província do Cabo Oriental

1944 Ingressa no Congresso Nacional Africano (CNA)

1952 É processado de acordo com a Lei para Supressão do Comunismo, do governo de apartheid sul-africano. Recebe sentença de prisão, depois suspensa

1962 Deixa o país secretamente e recebe treinamento militar na Argélia. De volta ao país, é condenado a cinco anos por incitar revoltas

1964 Condenado à prisão perpétua, escapando por pouco da pena de morte

1985 Rejeita a oferta de Pieter Botha, então presidente da África do Sul, de ser libertado em troca de renunciar à violência

1990 Libertado da prisão. No mesmo ano, Frederik de Klerk, o último presidente branco do país, acaba com a proibição do CNA, que teve início em 1960

1993 Ganha o Prêmio Nobel da Paz junto com De Klerk

1994 É eleito o primeiro presidente negro da África do Sul

2013 Morre aos 95 anos em Joanesburgo

Mathias Alencastro

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