Flávia Mantovani
São Paulo

Quando se mudou para o Brasil, há seis anos, Samira Nancassa, 28, tinha dois sonhos: concluir um curso superior e ser modelo. O primeiro ela realizou: formou-se em administração na PUC de Campinas em 2016.

Do segundo, já tinha desistido, principalmente depois que engravidou —ela tem um filho de 1 ano e 3 meses. Até que, no início deste mês, a administradora nascida em Guiné Bissau e criada em Cabo Verde foi eleita a mais bela imigrante africana do Brasil.

“Eu não estava esperando. Já tinha desistido de correr atrás disso porque tropecei muito, me tornei mãe recentemente”, diz. “Fiquei com o pé atrás até de concorrer. Nunca imaginei que iria ganhar.”    

O concurso vencido por Samira foi a primeira edição do Miss África Brasil. O desfile foi na Galeria Olido, no centro de São Paulo, aberto ao público.

“Pensamos que viriam umas cem pessoas. Mas foram mais de 450. Não tinha espaço para tanta gente”, diz o angolano Geovany Aragão, 28, organizador do concurso.

Aragão chegou ao Brasil há quatro anos para jogar futebol profissionalmente. Hoje, faz mestrado em engenharia e é diretor de uma associação de estudantes africanos. 

 

Ele afirma que decidiu criar o Miss África Brasil para valorizar as raízes e a autoestima das imigrantes e para divulgar a cultura africana entre os brasileiros.

“Para além da beleza, vimos a história delas, o que esperam fazer daqui para a frente e o que vão levar para a África. Porque a África não precisa simplesmente de ajuda financeira, precisa de ideias que gerem crescimento”, diz ele.

De família pobre, Samira veio para o Brasil após conseguir uma bolsa de estudos. Trabalhou como garçonete para se sustentar e teve dificuldade de se inscrever em agências de modelos por não ter recursos para pagar um book fotográfico. 

Acabou dividindo o valor das fotos em várias parcelas e foi representada por uma agência, mas ficou decepcionada por terem surgido poucas oportunidades.

Ela agora está desempregada e, como não tem conseguido trabalho em sua área, está procurando de tudo. “Estou há quase um ano tentando. Já distribui muitos currículos: para atendente, auxiliar de limpeza, auxiliar administrativo. Preciso de algo para me manter e para manter meu filho”, conta ela, que é separada do pai do garoto.

O prêmio do Miss África Brasil é uma bolsa de estudos, além de uma viagem. “Somos imigrantes, viemos buscar experiência aqui. Dinheiro acaba, mas o conhecimento fica para a vida toda”, diz Aragão.

Samira gostou da premiação, pois afirma que adora estudar. Como já tem curso superior, vai aproveitar a bolsa para fazer uma pós-graduação em gestão de pessoas.

Em Cabo Verde, ela morava na Ilha de Santiago, que tem cerca de 300 mil habitantes. Em São Paulo, ainda se surpreende com a quantidade de pessoas. “Esses dias, passei pela estação da Luz e estava um tumulto enorme. Nunca tinha visto isso.”

A guineense considera os brasileiros, no geral, “acolhedores”, mas diz que ficou “chocada” com o preconceito racial, algo que nunca tinha experimentado na África. 

“Já me disseram muitas vezes, aqui no centro, coisas como: ‘Por que você não volta para o seu país?’”, conta.

Também está acostumada a ouvir “perguntas absurdas”, como se na África existem automóveis ou se ela convivia com zebras e leões. “Quando vejo que é ignorância, eu geralmente nem levo em consideração e relevo”, afirma.

Mas um episódio ocorrido em Campinas foi especialmente doloroso, conta. Ela tinha acabado de ser demitida do emprego e voltava para a casa que dividia com outros estudantes em um bairro nobre da cidade.

“Uma senhora estava saindo de casa para entrar no carro dela. Quando me viu, tentou fugir de mim, parece que achou que eu ia assaltá-la”, conta. “Fiquei furiosa. Voltei chorando para casa”, lembra.
 

Concorrentes do Miss África Brasil 2018 em São Paulo
Algumas concorrentes do Miss África Brasil 2018 em São Paulo - Divulgação

Aragão também sente o preconceito racial. “Você nota: se está treinando corrida na calçada à noite, as pessoas estão fugindo de você porque acham que é ladrão. Estive em vários países da África e lá nunca passei por isso. Se para o preto brasileiro é difícil se enquadrar aqui, imagina para um preto estrangeiro?”

O concurso Miss África Brasil teve 25 inscritas, mas algumas que moram fora de São Paulo não puderam viajar por falta de patrocínio. No fim, desfilaram 14 mulheres, de países como Mali, Senegal, Moçambique, Angola, República Democrática do Congo, Níger e Guiné Conacri.

Durante o desfile, os organizadores deram informações sobre os países das concorrentes.

“Muita gente acha que a África é um país, não um continente com mais de 50 países, cada um com uma cultura diferente. O público adorou aprender mais”, relata Aragão, que agora busca apoio para organizar a versão masculina do concurso, o Mister África Brasil.

Samira espera que sua história inspire outras imigrantes e que a mulher africana seja vista “com outro olhar” fora do continente. Já tem percebido avanços: “De dois anos para cá, vejo uma maior presença da beleza negra na mídia internacional, do cabelo afro, dos tecidos africanos. Isso me deixa orgulhosa”.

Samira Nancassa, 28, ao vencer o concurso Miss África Brasil
Samira Nancassa, 28, ao vencer o concurso Miss África Brasil - Divulgação
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