Ao menos dez países têm mísseis como os banidos por tratado entre EUA e Rússia

Trump acusa Moscou de violar acordo, mas principal preocupação é com a China, que tem o artefato

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David E. Sanger William J. Broad
Washington | The New York Times

Quando os EUA deram um ultimato à Rússia, na semana passada, avisando que se preparam para abandonar um tratado fundamental sobre armas nucleares, a reação do presidente Vladimir Putin foi combativa. A possibilidade de uma retomada da corrida armamentista nuclear está amplamente sendo vista como uma reprise da Guerra Fria.

Mas isso abrange apenas uma parte do problema –e pode ser a parte mais fácil de administrar.

Hoje os EUA e a Rússia não detêm mais o monopólio dos mísseis que Ronald Reagan e Mikhail Gorbatchov concordaram em 1987 proibir, assinando para isso o Tratado de Forças Nucleares de Médio Alcance, ou INF.

Os presidentes da Rússia, Vladimir Putin, e dos Estados Unidos, Donald Trump, durante a cúpula do G20 em Buenos Aires
Os presidentes da Rússia, Vladimir Putin, e dos Estados Unidos, Donald Trump, durante a cúpula do G20 em Buenos Aires - Marcos Brindicci - 30.nov.18/Reuters

Hoje 95% da frota terrestre da China utiliza mísseis semelhantes, e Irã, Índia, Arábia Saudita, Coreia do Norte e Taiwan fazem parte dos dez países dotados de arsenais semelhantes, que vêm crescendo rapidamente.

Em um reflexo da visão da administração Trump de como lidar com uma ordem global nova e mais ameaçadora, Washington não parece estar interessada em tentar renegociar o tratado de modo a incluir todos os países que hoje possuem os mísseis, que podem carregar ogivas convencionais ou atômicas. E

Em vez disso, os EUA estão assinalando sua intenção de abandonar o tratado e, de olho na China, posicionar na Ásia o tipo de armas que tiraram da Europa nos dias perigosos que antecederam a queda do Muro de Berlim.

A administração americana atribui o fracasso do tratado, visto até agora como um dos mais bem-sucedidos dos acordos de controle de armamentos da Guerra Fria, a violações russas, o que Moscou nega. Mas a questão maior é que o presidente Trump quer se livrar do que vê como sendo limitações à capacidade americana de se contrapor a outras potências em ascensão, principalmente a China.

O almirante Harry B. Harris Jr., ex-comandante das forças dos EUA no Pacífico e hoje embaixador dos EUA na Coreia do Sul, destacou essa preocupação em depoimento que prestou diante do Congresso no ano passado. “Estamos sendo superados por países que não são signatários” do tratado, ele disse.

Segundo Harris, o tratado impede os EUA de construir uma nova classe de armas convencionais e nucleares para se contrapor à influência chinesa crescente no Pacífico, enquanto Pequim, o adversário que hoje causa mais preocupação a Washington, não enfrenta essas limitações.

Mas o receio dos proponentes do controle de armas não é apenas que o tratado INF seja anulado. Um tratado muito maior também pode desabar em breve: o novo Start, ou Tratado de Redução de Armas Estratégicas, que reduziu as armas nucleares americanas e russas para o nível histórico mais baixo, de 1.550 mísseis balísticos intercontinentais, quando entrou em pleno efeito este ano.

Negociado pelo presidente Barack Obama, o novo Start chega ao fim de sua vigência um mês após a próxima posse presidencial. Na quinta-feira (6) o presidente do Estado-Maior Conjunto, Joseph Dunford, expressou dúvidas pela primeira vez quando à sua prorrogação.

“Seria melhor que a Rússia cumprisse os termos do INF. Isso definiria as condições para uma discussão mais ampla sobre outros acordos de controle de armas, incluindo a extensão do Start”, disse Dunford em um evento do jornal The Washington Post. “Acho difícil visualizar progresso na extensão do tratado se a base para isso for o descumprimento do tratado INF.”

A administração Trump disse na semana passada que a Rússia tem 60 dias para se adequar aos termos do INF. Depois desse prazo os EUA se sentirão livres para “suspender suas obrigações” previstas pelo tratado, disse na quinta (6) a jornalistas o embaixador americano na Rússia, Jon Huntsman Jr.

“A Rússia precisa voltar a cumprir o acordo plenamente e de modo verificável. Se não o fizer, o resultado será o fim do tratado INF”, ele disse. “Que fique claro: a Rússia não deu nenhum indício até agora de que pretende voltar a cumprir o tratado plenamente.”

Mesmo assim, Huntsman e Andrea Thompson, a subsecretária de controle de armas e segurança nacional, não mencionaram na quinta-feira nenhum plano para emendar o tratado de modo a incluir vários outros países.

Na quarta-feira (5), Putin, horas antes do funeral de George H.W. Bush, o presidente americano que desmontou milhares de armas nucleares táticas criadas para combater uma invasão soviética, se declarou disposto a retaliar na mesma medida.

Putin disse: “Parece que nossos parceiros americanos creem que a situação mudou tanto” que a administração Trump agora quer construir seu próprio arsenal de armas nucleares de médio alcance. “Qual será nossa resposta?”, ele perguntou retoricamente, em fala transmitida pela televisão. “É simples. Se isso acontecer, nós faremos o mesmo.”

Funcionários da administração americana dizem que não veem sinais de que qualquer lado vá ceder e nem mesmo dialogar com o outro sobre as implicações do possível abandono do tratado.

Exigindo anonimato para falar, alguns funcionários dizem que o mergulho em um clima de hostilidade mútua é o resultado inevitável da determinação de Putin em restaurar o arsenal de seu país e da paralisia de Trump em relação à Rússia, já que cada conversa ou negociação que ele inicia com o Kremlin desperta novas suspeitas na investigação especial sobre as relações de sua campanha com Moscou.

As origens do tratado remetem a 1977, quando a URSS desenvolveu um míssil móvel chamado SS-20, criado para poder atacar a Europa.

Cada artefato tinha três ogivas nucleares, cada uma das quais podia ser disparada contra uma cidade diferente. E a partir disso emergiram muitos outros mísseis com alcances diversos. As negociações do tratado começaram sob Jimmy Carter, mas ganharam ímpeto com Reagan e Gorbatchov.

Quando esses dois líderes firmaram o tratado INF, em 1987, o alcance do pacto surpreendeu a quase todos: ele proibia todos os mísseis terrestres com alcance de 500 km a 5.500 km, com ogivas nucleares ou convencionais. Graças ao tratado, Washington destruiu 846 de seus mísseis, e Moscou, 1.846 –e a Europa deu um suspiro de alívio.

Na época em que o INF foi assinado, a China mal foi levada em consideração. Ela possuía um punhado de mísseis intercontinentais capazes de alcançar os EUA e algumas dezenas de mísseis de médio alcance. Mas essa situação mudou drasticamente desde então devido aos esforços de Pequim para intimidar Taiwan, exercer influência em todo o leste asiático e manter navios americanos longe das costas da China.

Hoje a China possui várias centenas de mísseis que violariam o tratado –se Pequim fosse signatária dele.

Pequim vem dedicando recursos industriais consideráveis à construção do DF-26 (as iniciais são de Dong Feng, ou Vento Leste). Exibido pela primeira vez em uma parada militar em 2015, o míssil de 14 metros de comprimento foi transportado sobre caminhões com 12 rodas enormes e pintura camuflada.

O míssil podia ser armazenado em bunkers subterrâneos, transportado por estradas e disparado contra alvos distantes. Analistas ocidentais avaliaram seu alcance em cerca de 4.000 km, o suficiente para ameaçar bases americanas em Guam.

É uma tecnologia que a Coreia do Norte está reproduzindo e acelerando, apesar de Trump insistir que conquistou avanços diplomáticos e que a ameaça norte-coreana foi virtualmente eliminada.

A China foi a preocupação principal quando Harris disse ao Congresso que 95% dos mísseis terrestres de Pequim hoje se enquadram na categoria das forças nucleares de médio alcance: “Vejo como problemáticos os aspectos do tratado INF que limitam nossa capacidade de enfrentar os mísseis terrestres chineses e de outros países”.

A China não é o único país a possuir esses mísseis. Ian Williams, especialista em mísseis junto ao Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, um think tank de Washington, disse que hoje há dez países dotados de mísseis de médio alcance, incluindo Índia, Irã, Israel, Arábia Saudita, Coreia do Sul, Paquistão e Taiwan.

Foi a administração Obama quem primeiro acusou a Rússia de violar o tratado, em 2013. No mês passado o diretor de inteligência nacional dos EUA, Dan Coats, fez uma apresentação detalhada das alegações dos EUA, descrevendo um esforço complexo de Moscou de acobertar os testes de um míssil que violava o limite de alcance previsto no tratado.

A Rússia negou a alegação –e acusou os EUA de posicionar lançadores na Europa que também podem ser usados para violar o tratado.

“A resposta da Rússia nos últimos cinco anos vem sendo a mesma”, disse Coats. “Negar qualquer infração, exigir mais informações para tentar determinar como os EUA detectaram a infração e replicar com acusações falsas de que os EUA estão violando o tratado.”

A partir do momento em que Obama estudou a possibilidade de retirar os EUA do tratado, quatro anos atrás, o Pentágono começou a desenvolver discretamente uma série de opções para reforçar seu arsenal.

Representantes do Congresso disseram que é provável que a administração Trump recorra temporariamente ao míssil de cruzeiro Tomahawk, redesenhado para ser disparado em terra. Mas o Pentágono já está financiando o Míssil de Ataque com Precisão, que teria um alcance justamente abaixo do limite de 500 km definido pelo INF.

Especialistas dizem que não seria preciso grande esforço para ampliar esse alcance de modo a poder atingir alvos mais distantes, no caso de a administração Trump se retirar do acordo de controle de armas.

A Raytheon e a Lockheed Martin competem pelo contrato de produção desse míssil, e a previsão é que os protótipos sejam testados em 2019.

Tradução de Clara Allain

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