Comunidade poderá opinar sobre grandes obras após maior desastre de mineração do México

Decisão histórica da Suprema Corte beneficia 200 pessoas afetadas por vazamento na bacia do rio Sonora

Lideranças do comitê da bacia do rio Sonora observam o rio Bacanuchi, contaminado em 2014 por um vazamento de rejeitos minerais

Lideranças do comitê da bacia do rio Sonora observam o rio Bacanuchi, contaminado em 2014 por um vazamento de rejeitos minerais Lalo de Almeida/Folhapress

Fabiano Maisonnave
Rio Sonora (México)

Combinação improvável de "vaquero" e professor de ensino fundamental, Martín Valenzuela descobriu uma forma de incendiar a imaginação dos alunos, que, vindos de famílias rurais pobres do norte mexicano, voltavam das férias sem grandes aventuras para contar. 

"Eu lhes dizia: viajamos pelo espaço 365 dias por ano e, quando terminamos, fazemos a festa do Ano-Novo”, conta Valenzuela, morador de Ures, município de 8.700 habitantes. "E temos a nave mais bonita, equipada com água, uma camada de oxigênio. Mas ela está falhando, porque não a cuidamos.”

Para os habitantes desta região semidesértica, o descaso com a nave Terra se materializou na contaminação do rio Sonora, palco do pior desastre de mineração da história do México.

O acidente aconteceu em 6 de agosto de 2014, após falha na tubulação de Buenavista, quarta maior mina produtora de cobre do mundo, no município de Cananea. O acidente foi detectado no dia seguinte pelos moradores vizinhos, mas a empresa Grupo México, a maior mineradora do país, só notificou o governo quatro dias depois. 

Desde então, os 22 mil moradores da região, que vivem da agropecuária de pequena escala, lutam para ter os danos reconhecidos, receber atenção médica adequada e acessar água limpa.

Em setembro, após quatro anos, eles finalmente tiveram uma boa notícia: em decisão inédita e de jurisprudência nacional, a Suprema Corte de Justiça determinou que a comunidade de Bacanuchi, de 200 pessoas, seja consultada em temas socioambientais, incluindo a construção de uma nova barragem de rejeitos minerais. 

“Recebemos com alegria e como o primeiro passo para continuar na luta. Mesmo sendo um povoado pequeno, ganhamos contra uma empresa tão grande”, diz a agricultora Francisca García, 58. “Mas não há nada definitivo, temos de seguir lutando."

Metais pesados

O acidente despejou 40 milhões de litros no riacho Bacanuchi, afluente do rio Sonora, o maior da região e também afetado. O volume equivale a apenas 0,1% da quantidade despejada no ambiente pelo desastre de Mariana, em novembro de 2015, o maior derramamento de rejeito mineral já registrado no mundo. 

Por outro lado, o sulfato de cobre acidulado que vazou tinha uma concentração de metais pesados bem maior do que a lama da barragem da Samarco, explica o químico Antonio Romo, professor da Universidade de Sonora (Unison), em entrevista no seu laboratório.

Como exemplo, ele pega nas mãos um pote de 500 gramas de sulfato de cobre. “Se eu jogar isso num reservatório de água de uma cidade de 100 mil habitantes, intoxicaria todos. Os dados da empresa informam que vazaram 34,4 toneladas desse metal." 

"É difícil responder sobre qual o acidente mais grave, porque os efeitos nocivos serão vistos a médio e longo prazo”, diz Romo. "Nos dois locais contaminados, foram encontrados metais pesados que excedem os níveis recomendados para água para uso agrícola ou humano."

Como a vazão dos rios é pequena —ambos são intermitentes—, o volume foi suficiente para inundar áreas agricultáveis, além de contaminar o lençol freático. Imagens da época mostram leitos e poças tomados pela cor cobre no lugar da água transparente.

Em resposta, o Grupo México enviou centenas ​de trabalhadores para tentar retirar, com pás e carrinhos de mão, os dejetos tóxicos. A empresa também passou a fornecer água para os moradores, mas a distribuição durou apenas dois anos, segundo as lideranças.

Impacto

O acidente mudou a relação dos moradores com os rios. Como a maioria dos 381 casos de pessoas contaminadas foi por lesões na pele, o banho passou a ser evitado, em uma região sem outras fontes naturais de água e que resvala nos 50ºC no verão.

Ainda mais complicado é buscar alternativas para beber água. O Grupo México distribuiu via caminhões-pipa, mas o fornecimento já foi interrompido. Para piorar, não cumpriu a promessa de instalar 37 estações de tratamento de água ao longo dos cerca de 270 km de leitos de rios contaminados, atravessando sete municípios.

Sem alternativas, os moradores com mais recursos passaram a comprar água em galões, enquanto outros voltaram a usar os cerca de 320 poços abastecidos pelo lençol freático perto dos cursos d’água e que haviam sido interditados após o acidente.

Como não há monitoramento contínuo da água, a incerteza sobre a qualidade da água traz transtornos psicológicos, relatam os moradores. 

“Há pouco, colhi telique, uma erva parecida com o espinafre. Aí comecei a limpar na água e entrou um nervoso, algo me dizia que não deveria comer, me deu medo. E tive que jogar fora porque comecei a suar e tremer. Eu desconfio de tudo, não entro no rio nem nada”, diz García.

A agropecuária também foi afetada. Filho de agricultores da região, Valenzuela diz que, desde o derrame, não é mais possível plantar chile colorado em algumas áreas e que o amendoim cresce pequeno e com poucas vagens. Em Bacanuchi, o alho se abre e o milho apodrece.

"Antes, eu plantava alfafa e produzia por quatro anos. Agora, aparecem umas falhas, que se secam. É melhor comprar o feno de outra parte, porque dá muito gasto replantar”, diz Valenzuela, que tem uma propriedade de cinco hectares e cria duas dezenas de cabeças de vaca em uma terra de uso comum.

Aos 56 anos, o professor aposentado, que já falou na ONU em Genebra sobre o acidente, diz que plantas comestíveis que davam na margem do rio, como o agrião, desapareceram. Ao mesmo tempo os álamos, árvore típica da região, perderam as folhas e morreram.

Apesar dos sinais de contaminação, ele afirma que nunca houve uma análise de suas terras e que a única compensação que recebeu do Grupo México foi uma caixa-d’água para a casa.

“Havia um fundo para ressarcir as pessoas, mas fizeram uma confusão com o dinheiro, deram ao amigo do amigo, ao compadre do compadre. Nunca entregaram dinheiro às pessoas de fato afetadas nos seus cultivos”, diz Valenzuela, que culpa o governo federal a falta de critério para a distribuição.

Fim da assistência

Desde o ano passado, a Secretaria de Meio Ambiente dos Recursos Naturais (Semarnat), do governo federal declarou concluídos os trabalhos de mitigação e compensação do acidente. Com isso, iniciativas como um centro médico em Ures para atender as vítimas do desastre, já foram encerradas.

A decisão da Semarnat foi criticada por especialistas e entidades de direitos humanos, além de contestada na Justiça por moradores.

Os críticos mencionam um estudo feito pela Universidade Nacional Autônoma do México (Unam) sob encomenda do próprio Grupo México, que defende um monitoramento constante da contaminação por causa dos níveis elevados de alguns metais pesados.

Também detectou-se que 70% das crianças do município de San Felipe de Jesús têm alta concentração de chumbo no sangue. Os moradores exigem que testes semelhantes sejam feitos em todos.

“O que eles querem ver aqui? Um filme como a de mutantes, em que nós explodimos ou caímos aos pedaços, para que nos façam caso? Isso é uma injustiça, todos temos direito a um exame médico”, diz García, que viu uma de suas netas desenvolver dermatite crônica.

Em linguagem mais técnica, o epidemiologista Héctor Duarte Tagles, da Unison, concorda com a preocupação da agricultora.

“Apenas se reconheceram os efeitos agudos provocados pela exposição”, diz, em entrevista em seu escritório. “O que preocupa são os casos crônicos, que não são considerados e que requerem análises e estudos mais detalhados.”

Tagles diz que esses efeitos costumam aparecer a partir dos cinco anos da exposição. Por causa do tipo de metais despejados, ele teme doenças do fígado, câncer, diabetes e problemas cardiovasculares. 

A Folha foi ao escritório do Grupo México em Hermosillo, capital de Sonora, mas não foi autorizado pela segurança a entrar no prédio nem a falar com um representante por interfone.

A reportagem deixou uma mensagem por escrito com email e telefone, mas ninguém entrou em contato. O site da maior mineradora mexicana não divulga informações sobre como contatar a sua assessoria de imprensa.

Foi enviada uma solicitação de entrevista por email à Semarnat, sem resposta. O governo federal vive um período de transição. 

Suprema Corte e López Obrador

Assessora jurídica e de direitos humanos das comunidades afetadas, a ONG Poder avalia que a decisão da Suprema Corte é histórica porque estabelece o direito à participação também para comunidades não indígenas e por estendê-lo a temas ambientais, e não só políticos.

"No entanto a sentença sofre de um defeito igualmente importante: se esquece de determinar de que a autorização da nova represa de dejetos fica invalidada”, o advogado de Poder Luis Miguel Cano, sobre uma nova bacia várias vezes maior do que a que originou o derrame.

Para Valenzuela, que vê a decisão judicial com ceticismo, caberá ao recém-empossado presidente Andrés Manuel López Obrador decidir sobre como lidar com os impactos do derrame.

"Ele esteve em Ures na campanha”, conta. "Entregamos um documento sobre a história da contaminação. Ele leu, esteve um momento pensando sério, e depois disse: 'Faltam sete meses para as eleições. Melhor responder quando me tornar presidente da República’. Estamos esperando a resposta.”

 

Esta reportagem faz parte de uma série sobre pessoas e projetos que defendem os direitos humanos pelo mundo, nos 70 anos da promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos (leia o documento na íntegra aqui). 

As despesas de viagem dos repórteres Fabiano Maisonnave e Lalo de Almeida foram custeadas pela ONG Conectas

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