“Cuba ainda está vivendo uma revolução”, diz o jornal online Havana Times, e a afirmação engendra de fato as perguntas que todos fazem: o que restou do movimento que completa 60 anos neste 1º de janeiro, quão substanciais foram as mudanças socioeconômicas implementadas de lá para cá e para onde a ditadura da ilha se encaminha.
Depois que o grupo capitaneado por Fidel Castro, seu irmão Raúl, Che Guevara e Camilo Cienfuegos derrubou a ditadura de Fulgencio Batista após anos de guerrilha, só em 1961 a Cuba revolucionária se declarou comunista —até então a revolução era “tão cubana quanto nossas palmeiras”, segundo Fidel.
Foi uma manobra necessária diante do bloqueio imposto pelos EUA e do inevitável alinhamento, em plena Guerra Fria, à União Soviética. Em 2002, emenda constitucional declarou que o socialismo é irrevogável e que Cuba “jamais voltará ao capitalismo”.
Hoje a ilha é uma ditadura socialista unipartidária. Em 2018, a Assembleia Nacional elegeu Miguel Díaz-Canel presidente –o primeiro “não Castro” a liderar o país desde 1959.
Comparações estatísticas com o período pré-revolução são complicadas por disparidades metodológicas, como explica o economista cubano-americano Carmelo Mesa-Lago, professor da Universidade de Pittsburgh. Segundo ele, vários indicadores, como PIB e desemprego, não são calculados pela metodologia internacional tradicional. A pobreza não é computada.
Independente disso, o apelo quase romântico do ideário da revolução (ao qual, paradoxalmente, se soma o “vai pra Cuba” dos antiesquerdistas) permanece.
“Revoluções são fatos históricos, como a francesa e a russa. Cuba se orgulha de ter se livrado da ditadura de Batista e da humilhação de ser um bordel de turistas ianques”, afirma Frei Betto, frade dominicano e escritor que foi assessor especial do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
“Porém, o bloqueio imposto ao país pela Casa Branca afeta duramente o desenvolvimento cubano. E para aquele povo, resistir com dignidade é mais importante do que ceder aos ditames de Tio Sam.”
“Este é um legado da revolução: comprovar que é possível uma nação pobre existir na América Latina fora da tutela dos EUA”, acrescenta.
Para o venezuelano Moisés Naím, ex-editor da revista Foreign Affairs e membro do Carnegie Endowment for International Peace, apenas o que chama de “necrofilia ideológica“ justifica a contínua atração à revolução.
“Necrofilia é uma perversão em que se tem paixão ou amor por cadáveres. Há uma versão política da necrofilia que é a paixão ou amor por ideias fracassadas. Ideias que foram testadas no mesmo país repetidamente, em países diferentes, em continentes diferentes, em momentos históricos diferentes, e sempre levaram ao mesmo resultado: pobreza, repressão e medo”, diz.
Naím reconhece as conquistas cubanas nos campos da saúde e da educação. “Mas por que para ter isso você tem de ser reprimido e viver numa ditadura?”, questiona.
Para Mesa-Lago, autor de “Voices of Change in Cuba” (Vozes de mudança em Cuba), o legado revolucionário é negativo do ponto de vista econômico, com mudanças que tentaram manter o planejamento vertical com controle estatal sobre o setor privado, em um cenário de incertezas e de falta de incentivos.
“É como se quisessem salvar o sistema e estivessem dispostos a fazer mudanças para isso, mas por outro lado impõem uma série de restrições. É a mão direita fazendo uma coisa, e a esquerda, outra.”
A nova lei de usufruto da terra, por exemplo, duplicou de 10 anos para 20 anos o período de usufruto para agricultores privados e a área recebida. Mas determinou que parte da produção seja vendida ao Estado por valores abaixo dos de mercado, fixados pelo governo.
“Em seu começo a Revolução Cubana foi uma inspiração tremenda para a América Latina e para os países em desenvolvimento do mundo inteiro. Mas a economia não funcionou, e a economia é fundamental para manter qualquer conquista social”, disse.
A reforma da Constituição aprovada em dezembro pela Assembleia Nacional e que irá a referendo em 24 de fevereiro oferece, timidamente e no longo prazo, possibilidade de abertura econômica, política e social.
A expectativa de exclusão de artigo que estipula que o país continuará “avançando rumo ao socialismo” não se concretizou, e manteve-se o modelo socialista centralizado de partido único.
Mas o texto reconhece pela primeira vez a propriedade privada, cria o papel de premiê e de governadores e abre caminho para um outro referendo, sobre o casamento gay, disse a mídia local (o texto não foi divulgado oficialmente).
“Do ponto de vista econômico, a nova Constituição indica que vai haver não mudança, mas consolidação de tudo que se fez nos últimos dez anos”, diz Mesa-Lago. Ele se refere às reformas estruturais feitas por Raúl Castro entre 2007 e 2008 e em 2016, que considera as mais importantes.
“Essas mudanças foram ditadas pela biologia e não pela ideologia. Fidel Castro está morto, Raúl está muito velho, então precisam mudar. Mas em essência, Cuba continua sendo um negócio de família. E todas as mudanças são feitas para apoiar e sustentar a continuidade desse negócio familiar”, avalia Naím.
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