Há 30 anos, retirada após derrota no Afeganistão acelerou queda da URSS

'Guerra fácil' imaginada por Moscou durou dez anos e deixou mais de 1,5 milhão de mortos

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Cabul | AFP

Em 15 de fevereiro de 1989, às 11h30 locais, o general Boris Gromov foi o último militar soviético a cruzar a ponte sobre o Amu Daria, o rio que faz fronteira natural entre o Afeganistão e o Uzbequistão, que na época era uma república soviética.

Depois de dez anos de conflito, 1,5 milhão de mortos no lado afegão e cerca de 15 mil entre os soviéticos, a resistência dos afegãos acabou vencendo o Exército Vermelho.

Soldado soviético cumprimenta afegão em meio a retirada de tropas da URSS em Jalalabad
Soldado soviético cumprimenta afegão em meio a retirada de tropas da URSS em Jalalabad - Richard Elias - 15.mai.88/Reuters

Decidida secretamente por um grupo restrito de membros do Politburo, a invasão do Afeganistão, em 27 de dezembro de 1979, foi desencadeada oficialmente para ajudar, frente à rebelião islâmica, o "irmão afegão" ligado ao Kremlin por um tratado de amizade e cooperação assinado com esse país, que, um ano antes, havia se tornado comunista através de um golpe de Estado.

Moscou achava que venceria uma guerra fácil, mas nunca conseguiu romper as linhas de abastecimento da resistência afegã, armada por americanos, financiada por sauditas e apoiada logisticamente pelo Paquistão.

Em 14 de abril de 1988, a União Soviética se comprometeu, com a assinatura dos Acordos de Genebra, de retirar antes de 15 de fevereiro do ano seguinte seu contingente de mais de 100 mil efetivos. 
 
A saída foi realizada em duas fases, e em cada uma delas foram retirados 50 mil militares. A primeira se estendeu de 15 de maio a 15 de agosto de 1988. A segunda começaria em 15 de novembro, mas foi adiada pela pressão dos mujahedines. No final, começou na mais absoluta discrição no início de dezembro.

As condições não eram fáceis. As filas de veículos procedentes de Cabul pela estrada de Salang, que cruza uma cadeia montanhosa a 3.600 metros de altura, deviam enfrentar o inverno mais intenso no país em 16 anos.

Além disso, a resistência islâmica mantinha sua pressão e houve mortos em combate no último dia da retirada.

Em 15 de fevereiro, o Comitê Central do Partido Comunista soviético e o Conselho de Ministros elogiaram os "soldados que voltaram por ter cumprido seu dever patriótico e internacionalista com honestidade e valor".

Soldados soviéticos receberam flores na chegada a Termez (Uzbequistão), em 15 de fevereiro de 1989. "A pedido do governo legítimo do Afeganistão, vocês protegeram seu povo, as mulheres, as crianças, os idosos, as cidades e os povos, protegeram a independência nacional e a soberania de um país amigo", enfatizou a mensagem.

No entanto, o tom da imprensa de Moscou foi outro. "Com a alegria do retorno dos soldados, a dor das perdas e os pensamentos amargos se misturam", resumiu o Pravda, órgão do Partido Comunista.

"O Comitê Central foi inundado com cartas pedindo que a guerra parasse, escritas por mães, esposas e irmãs dos soldados [...] Alguns oficiais declararam-se incapazes de explicar a seus subordinados porque estavam lutando, ou por que estavam fazendo aquilo", declarou o antigo presidente soviético Mikhail Gorbatchov em 2003, considerando que a entrada da União Soviética no Afeganistão foi um "erro grave".

Soldado soviético que lutava no Afeganistão prepara para embarcar em Termez, no Uzbequistão - Sergei Karpukhin - mar.89/Reuters

Em Cabul, "nenhuma publicidade ou cerimônia marcou a partida do último soldado soviético, que saiu de lá no meio de uma total indiferença, por parte dos oficiais ou da própria população", escreveu em 15 de fevereiro de 1989, o enviado especial da AFP.

"'Eles partiram', simplesmente afirmaram os habitantes de Cabul, levantando os braços para o céu, num "gesto de satisfação e preocupação, ao mesmo tempo, por não saber o que o futuro trará", acrescentou.

Tanques, canhões e baterias antiaéreas foram posicionados em partes acima do aeroporto, pois as autoridades temiam que uma ofensiva da resistência pudesse ser realizada.

Em 1992, o presidente Mohammad Najibullah renunciou, assinando o fim do comunismo no Afeganistão.

Ele seria substituído por um governo saído da resistência, mas logo as dissidências internas causariam estragos.

Arruinado, o Afeganistão estava mais fragilizado do que nunca, a guerra civil não tardaria a acontecer e, em 1996, os talebans assumiriam o poder.


40 anos de conflitos no Afeganistão

 1979-89: Ocupação soviética
 
Em dezembro de 1979, Moscou desloca a frente da Guerra Fria ao invadir este país remoto e montanhoso no limite com o sul da Ásia e Oriente Médio, para implantar o comunismo. 

Os resistentes afegãos, apoiados pelo Ocidente —liderado pelos Estados Unidos— cercam o Exército Vermelho até que este abandona o país em fevereiro de 1989. 

1992-96: A época das guerras civis
 
Em 1992, a queda do governo comunista do presidente Mohammad Najibullah provoca o início de uma violenta guerra civil entre facções afegãs, que deixou em dois anos quase 100 mil mortos e destruiu parcialmente a capital, Cabul.

A partir de 1994 os talebans, combatentes islamitas fundamentalistas apoiados pelo Paquistão, avançam a partir do sul afegão.

1996-2001: Sob o jugo dos talebans
 
Os talebans tomam o poder em Cabul e instalam um regime baseado em uma interpretação rigorosa da lei islâmica, que proíbe que as mulheres trabalhem e estudem, além de obrigá-las a usar a burca fora de casa. O governo também proíbe a música. 

Sob sanções da ONU, o regime Taleban, dirigido pelo mulá Omar, se aproxima da Al Qaeda e recebe seu líder, Osama Bin Laden.

Final de 2001: Invasão ocidental

Após os atentados de 11 de setembro de 2001 cometidos pela Al-Qaeda em Nova York e em Washington, soldados dos Estados Unidos invadem o Afeganistão à frente de uma coalizão ocidental e derrubam os talebans.

Estados Unidos e Otan expulsam os talebans, instalam Hamid Karzai no poder, injetam bilhões de dólares em ajuda para reconstruir o país e mobilizam 150 mil soldados para ajudar o governo afegão a garantir a segurança. 

Os talebans se escondem ou fogem para países vizinhos, especialmente o Paquistão, e depois retomam uma rebelião contra o governo afegão e a Otan. 
 
2014: Retirada da Otan
 
A força de combate da Otan deixa o país depois de 13 anos de conflito no Afeganistão, com um balanço discreto pela intensa pressão da insurreição taleban. 

A Otan permanece no Afeganistão no âmbito da missão "Apoio Resoluto", mas os talebans prosseguem com suas ações: o número de atentados aumenta, sobretudo em Cabul, onde a população civil paga um preço elevado, sobretudo a partir do surgimento em 2015 do grupo extremista Estado Islâmico (EI).

No fim de 2018, o presidente americano, Donald Trump, anuncia a intenção de abandonar o país. De modo paralelo, Washington aumenta as negociações diretas com os talebans, que também negociam com a Rússia em Moscou.

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