China mira América Latina em seu maior projeto de influência exterior

Pequim deve usar reunião dos Brics no Brasil para propor adesão de países da região ao Belt and Road

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São Paulo

Depois de ganhar impulso a partir de 2017, o maior projeto da Presidência Xi Jinping para ter acesso a mercados internacionais e atrair países para sua esfera de influência vai mirar a América Latina --e naturalmente seu maior mercado, o Brasil.

A chamada Belt and Road Initiative (BRI ou, informalmente, Nova Rota da Seda) liga Ásia, Oriente Médio, Europa e África por meio de ferrovias, portos e outras obras de infraestrutura.

O projeto já soma 22 países e 180 memorandos assinados, segundo o governo chinês; eram 46 memorandos até o fim de 2016, quando já estavam funcionando 39 ferrovias ligando a China à Europa.
Devido à sua posição geográfica, voltada para o Pacífico, o Chile tradicionalmente negocia com países asiáticos. Assim, foi o primeiro latino-americano a aderir à BRI por meio de um memorando assinado no fim de 2018.

É na cúpula dos Brics (grupo que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), em novembro, em Brasília, que Pequim deve propor adesão dos países da região ao que Xi chama de "projeto do século", dizem analistas e a mídia local. 
 

Operários fazem manutenção de trilhos da estação de Dazhou, na China, que integrará uma conexão ferroviária entre Chongquing e a Duisburgo, na Alemanha, como parte da Nova Rota da Seda - 14.mar.19/Reuters

Trata-se de uma decisão política relevante a expansão da BRI tão amplamente em termos geográficos e para além da concepção original.

O governo de Jair Bolsonaro tem emitido sinais dúbios em relação à China. A ala mais ideológica quer reduzir a exposição brasileira ao gigante asiático, que vê como uma ameaça estratégica.

Em aula magna a alunos do Instituto Rio Branco, academia do Itamaraty que forma diplomatas, o chanceler Ernesto Araújo disse que o Brasil "não vai vender sua alma para exportar minério de ferro e soja". A China é a maior compradora de soja e minério de ferro do Brasil.
 
O setor reclamou, e o ministro da Economia, Paulo Guedes, mais pragmático, afirmou que não haveria redução do comércio com a China.

Antes de embarcar para os EUA para se encontrar com o presidente Donald Trump, Bolsonaro anunciou uma visita a Pequim --uma vitória dos moderados, segundo Oliver Stuenkel, professor da FGV.

"Existe na China uma preocupação com a intensidade da retórica de Bolsonaro. Isso pode ter implicações para a relação com a China, mas a expansão da Belt and Road para a América Latina continua sendo uma prioridade para Pequim. A reunião entre Bolsonaro e Trump não muda essa lógica", afirmou.

A preocupação dos Estados Unidos com o avanço chinês é justificada. Ao financiar obras para o porto de Pireus, na Grécia --quando o país estava estrangulado pela crise financeira--, Pequim fincou os pés em Bruxelas.

Vai fincar um pouco mais, já que no sábado (23) Pequim assinou com a Itália um memorando da BRI para investir em portos, logística e transporte marítimo --o primeiro acordo com um país do G7. 

"Isso dá uma legitimidade muito grande ao projeto. Na Europa há um debate muito interessante sobre como a competição interna entre países europeus por investimentos chineses acaba reduzindo a capacidade europeia de agir com uma voz só e articular uma estratégia mais coerente em relação à China", afirmou Stuenkel. "A adesão italiana dificulta essa estratégia." 

Para atuar em território afegão, a China conversou com o Taleban e grupos locais. Obteve voz no governo em Islamabad ao fazer do Corredor Econômico China-Paquistão (CEPC) peça central da BRI. Vai fixar presença militar na África ao construir uma base em Djibuti que será a única instalação militar chinesa fora da China. 

Mas o fato é que os Estados Unidos têm pouca capacidade de competir com o avanço chinês, que se dá em áreas em que a China tem superioridade estratégica. "Os EUA não têm uma empresa para construir trem de alta velocidade na África nem têm trens de alta velocidade em seu território", exemplifica Stuenkel.

 

Endividamento por projetos preocupa analistas

Para além da questão da influência política, analistas se preocupam com a falta de transparência dos projetos relativos à Belt and Road Initiative e o alto endividamento que geram.

Segundo algumas avaliações, isso torna uma série de países --especialmente nações pequenas, sem acesso ao sistema internacional de crédito-- praticamente reféns de dívidas milionárias com a China. 
Isso porque os projetos são geralmente financiados por empréstimos junto ao Estado chinês ou a instituições semiestatais chinesas.

Relatório do Centro para Desenvolvimento Global aponta oito países para quem a BRI já cria problemas de sustentabilidade da dívida, com impacto negativo sobre os gastos dos governos e sobre o crescimento econômico em geral. 

"Não há dúvidas de que podemos identificar benefícios nos projetos sob a BRI, seja uma maior eficiência no comércio ou uma atividade econômica mais alta", disse Scott Morris, um dos autores. 
"Mas não podemos deixar de olhar para os custos. Para muitos países isso tem a ver com uma avaliação do endividamento e da sustentabilidade dessas dívidas. E aí não fica tão claro se há um benefício líquido para alguns países." 

"Praticamente todo o financiamento da BRI é feito por empréstimos e não por ajuda financeira, e não está claro no caso de muitos países se eles têm a capacidade para assumir tais dívidas", explicou.

Djibuti, por exemplo, viu sua dívida externa pública aumentar de 50% para 85% do PIB em dois anos, segundo o FMI. A maior parte dessa dívida é com o China Exim Bank. 

A China ainda pretende construir no país africano um porto, um terminal petrolífero e uma estrada ligando Djibuti a Addis Abeba, na Etiópia.

Uma das nações mais pobres da Ásia, apesar do crescimento de em média 8% por ano na última década, o Laos tem quase metade do seu PIB --US$ 6 bi-- empenhada numa ferrovia que o liga à China. 
No Paquistão, 80% dos US$ 62 bilhões do custo estimado para o CEPC são financiados pela China. Devido ao alto endividamento, o país já cancelou projetos ligados ao BRI e pediu créditos ao FMI. 

Em 2011, a China concordou em perdoar uma parte da dívida do Tadjiquistão em troca de uma área de 1.158 km² em território disputado. Autoridades do país asiático dizem que cederam apenas 5,5% das terras que Pequim queria.

O Sri Lanka contraiu uma dívida de US$ 8 bilhões a uma taxa de juros de 6% para a construção do porto de Hambantota. Em julho de 2017, Pequim concordou em fazer um swap (troca) da dívida com um contrato de arrendamento de 99 anos para administrar o porto.

No Fórum Econômico Mundial em Davos, em janeiro, uma mesa com presença de representantes da China e de países participantes do evento, como o Azerbaijão, discutiu a BRI.

Na ocasião, o presidente azeri, Ilham Aliyev, lembrou que por anos o país buscou e não obteve financiamento para construção de uma ferrovia. "Instituições financeiras deveriam prestar mais atenção e ajudar países a investirem em infraestrutura que terá impacto", afirmou. 

O Laos volta a ser citado como exemplo: o pequeno país tem um papel central em projetos ferroviários que são centrais para a agenda da BRI, mas tem capacidade muito limitada de financiá-los.

"O Banco Mundial ou Banco de Desenvolvimento da Ásia simplesmente não financiaria projetos nessa escala em um país como o Laos porque o risco é muito alto. Então o país fica num dilema", concorda Morris. "Isso não significa que o investimento em tais projetos seja a resposta certa."

Uma das ambições chinesas é usar a BRI como uma marca para atores financeiros --no caso da América Latina, por exemplo, com um banco de desenvolvimento regional investindo no projeto ao lado de alguma participação chinesa. 

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