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Pandemia isola a realidade da América Latina do resto do mundo

Traços clássicos do presidencialismo se tornaram patentes, e pânico com recessão gera panorama de máxima incerteza

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Manuel Alcántara
Latino América 21

Um dos ensinamentos que a crise de 2008 ofereceu foi a irrupção do populismo, que, em diferentes configurações, varreu o planeta.

Do italiano Matteo Salvini ao filipino Rodrigo Duterte, passando pelo húngaro Viktor Orban, de Trump a Bolsonaro, da ascensão do Alternativa para a Alemanha ao Vox, do Syriza ao Podemos. A sensação de mal-estar fincou raízes e foi se estendendo por toda parte*.

O mal-estar social foi se expressando com a presença de movimentos de protesto em um clima de conflito generalizado, sob um ambiente de polarização e radicalização de narrativas, não necessariamente políticas.

O descontentamento tinha por origem a manutenção de padrões de exclusão social, com pautas muito deficientes de distribuição de riqueza, assim como a corrupção explícita, cuja visibilidade a tornava ainda mais insuportável.

O império cultural do neoliberalismo, que potencializa respostas individuais e egoístas, contribuiu ao contrariar formas de ação coletiva e lógicas de solidariedade tradicionais, em sociedades cada vez mais líquidas.

2019 foi um ano emblemático, quando tudo isso se cristalizou em mobilizações de caráter distinto, e as ruas de muitas cidades se encheram de pessoas protestando. Culminava assim uma década de protestos que, na arena espanhola, teve sua epifania no movimento dos indignados em maio de 2011.

Os contextos eram muito diferentes: Porto Rico, Haiti, Hong Kong, Catalunha, Equador, Chile, Colômbia, Bolívia... As reivindicações eram variadas, dificilmente reduzíveis a um único fator, ou mesmo a um denominador comum.

Eram resultado de uma complicada combinação de elementos nos quais o ordenamento de identidades surgia como algo peremptório, ou em que se buscava algo aparentemente tão simples como o reconhecimento; em outros casos, havia relação com a (des)igualdade, assim como com o desejo de administrar a gestão da desconfiança, amplamente estendida entre os indivíduos e para com as instituições.

Tudo isso se gestava em um breve lapso de desenvolvimento da nova ordem mundial digital. Imediatamente, a arena política, cujas regras de jogo se manifestavam como antiquadas e deixavam evidente sua incapacidade de realizar as tarefas que lhe cabem, pareceu entrar em um estado de fadiga democrática. Na prático, o resultado foi um vazio de representação, e seu correlato é o descrédito da intermediação, o desencanto e a desafeição política.

Era esse o diagnóstico do cenário, com ocupação do espaço público e governantes encurralados como nunca, no instante em que o calendário mostrava a chegada de um novo ano.

A pandemia gerada pela Covid-19 em poucas semanas, e com capacidade inédita de atingir todos os quadrantes do planeta, mudou drasticamente a agenda das coisas. De uma perspectiva latino-americana, ela torna possível realizar um exercício de introspecção regional, isolando a realidade da região do resto do mundo.

Há três aspectos que requerem consideração por haverem confluído em uma hora de esvaziamento das ruas e, de alguma forma, de desativação da pressão política que estava em alta, principalmente no segundo semestre de 2019.

Em primeiro lugar, os traços clássicos do presidencialismo se tornaram patentes. O poder presidencial se robusteceu, e os mecanismos de controle por parte de outras instituições foram cerceados; a centralização foi reforçada e a fraqueza dos partidos tornou-se evidente uma vez mais.

Os presidentes, não importa qual seja seu seu estilo de liderança, encontraram uma linha de argumentação para construir o relato de seu mandato.

Sebastián Piñera, do Chile, reagiu timidamente à queda em seus índices de popularidade. Os bisonhos Luís Lacalle Pou (Uruguai), Alberto Fernández (Argentina), Alejandro Giammatei (Guatemala), Laurentino Cortizo (Panamá), Nayib Bukele (El Salvador), e a interina Jeanine Añez (Bolívia) escaparam à urgência de desenvolver um programa (ou desígnio) próprio (o mesmo se aplica a Martín Vizcarra, do Peru, e a Iván Duque, da Colômbia).

Agora, o uso da bandeira nacional, os apelos à união, a retórica bélica e a ostentação das virtudes vernáculas são os sortilégios rançosos que caracterizam o discurso oficial.

O presidente Jair Bolsonaro, ao lado do vice, general Hamilton Mourão, com a bandeira do Brasil na cerimônia de posse, no começo de 2019, no Palácio do Planalto, em Brasília
O presidente Jair Bolsonaro, ao lado do vice, general Hamilton Mourão, com a bandeira do Brasil na cerimônia de posse, no começo de 2019, em Brasília. - Pedro Ladeira - 1º.jan.2019/Folhapress

É curioso que, até o momento, Andrés Manuel López Obrador, dotado de um ideário mais original, venha sendo o último a mudar timidamente o passo, enquanto Bolsonaro manteve um pulso inaudito com seu ministro da Saúde até sua cessação. Daniel Ortega (Nicarágua) nada sabe e nada contesta.

Em segundo lugar, mecanismos de controle jamais vistos foram impostos sobre as sociedades, e se tornou mais clara do que nunca a precariedade crescente dos sistemas de saúde, que, assim como a educação, constituem um dos pilares básicos da política.

Trata-se de países nos quais a cobertura de saúde é deficitária, e foi mercantilizada a tal ponto que existe um rombo enorme entre a esfera privada e a pública, em detrimento desta última. A porcentagem do Produto Interno Bruto (PIB) destinada à saúde é irrisória, e não está nem perto de ser suficiente para confrontar uma pandemia.

Por outro lado, são sociedades nas quais a desigualdade desloca milhões de pessoas para a marginalidade. A metade da população que trabalha informalmente, na média desses países, foi deixada no limbo, e, para os 25% que vivem em condições habitacionais precárias, a mensagem oficial de permanecer em casa é atrabiliária. Os programas de assistência social implementados parecem ser mais artifícios de propaganda do que outra coisa.

Por fim, o pânico diante da pior recessão econômica em 50 anos, com consequências devastadoras para setores majoritários da população, gera um panorama de máxima incerteza que será traumático.

O formidável endividamento de Estados raquíticos, com políticas fiscais improvisadas e economias fortemente dependentes do mercado externo, baseadas na exploração de recursos naturais não renováveis e no saque ao meio ambiente, prefigura um panorama de precariedade que, além disso, alimentará tanto respostas autoritárias quanto o ressurgimento das mobilizações sociais, a médio prazo.

*Alfredo Joignant demonstrou faro ao convocar um seminário sobre o assunto no Chile em 2016. O resultado foi um volume, compilado com a ajuda de Claudio Fuentes e Mauricio Morales (“Malaise in Representation in Latin American Countries. Chile, Argentina and Uruguay”, Palgrave Macmillan, Nova York).

Manuel Alcántara é professor de ciência política na Universidade de Salamanca e na Universidade Pontifícia Bolivariana de Medellín. Especializado em problemas de representação política e autor de "El oficio de político”.

www.latinoamerica21.com, um projeto plural que difunde diferentes visões sobre a América Latina.

Tradução de Paulo Migliacci

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