Na tarde desta quinta-feira (22), Washington será palco de um encontro que celebrará o que há de mais retrógrado no que se refere aos direitos das mulheres e de meninas.
A Declaração do Consenso de Genebra, anunciada em agosto por Todd Chapman, embaixador dos EUA no Brasil, pretende formar uma aliança mundial contra os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.
A declaração propõe, supostamente, a defesa da família —considerando apenas o modelo homem-mulher; a proteção da vida em todas as suas fases; o direito à saúde das mulheres—, descartando o acesso ao aborto legal e seguro; a soberania nacional; e a garantia de que esses valores sejam compartilhados dentro do sistema das Nações Unidas.
O acordo não é vinculante e não possui força de tratado internacional, ou seja, legalmente não obriga os países a seguirem o texto. No entanto, é um indicativo da condução da política externa brasileira em matéria de gênero e pode intensificar a atuação do país na quebra de consensos internacionais já existentes sobre o tema.
O aborto seguro, que no Brasil é previsto em casos de estupro, risco de vida ou anencefalia, tem sido atacado pelo governo de Jair Bolsonaro também por meio de sua política externa.
O texto, que reafirma a visão conservadora do papel das mulheres na família e advoga pela proteção do direito à vida desde sua concepção, teve baixa adesão.
A lista conta com coautoria do Brasil e de países conhecidos pelo desrespeito aos direitos humanos de maneira mais ampla e aos direitos das mulheres em especial, como é o caso de Hungria, Indonésia, Egito e Uganda. Essa aliança passa, sobretudo, ao largo da realidade desses mesmos países.
Vejamos o caso do Brasil. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019, o país registrou um estupro a cada oito minutos no último ano —57,9% das vítimas tinham no máximo 13 anos.
Em agosto, instituições públicas e movimentos antiaborto tentaram impedir a interrupção da gravidez de uma menina de dez anos vítima de um estupro.
Após o episódio, uma portaria editada pelo Ministério da Saúde passou a exigir que profissionais de saúde notifiquem os casos à polícia, como condicionante de acesso ao aborto legal —numa primeira versão, o documento tentou, ainda, impor a essas vitímas a visualização dos embriões antes do procedimento.
A medida foi questionada por três decretos legislativos, a serem votados, e é objeto de uma arguição de constitucionalidade, que aguarda ser pautada. O caso também foi denunciado ao sistema internacional de direitos humanos.
Nos EUA, uma tentativa de revogar a permissão para o aborto legal virou alvo central do presidente Trump.
A indicação de uma juíza ultraconservadora para a Suprema Corte americana poderá reverter a decisão no caso Roe vs. Wade, que em 1973 garantiu esse direito em todo o país.
Em Uganda, há mais de uma década registra-se a mais alta taxa de gravidez na adolescência da África subsaariana: 24% das mulheres são mães antes dos 19 anos de idade.
A adesão do Brasil a essa iniciativa apenas reafirma que a cruzada antigênero e de repúdio aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres é prioritária na atual política externa brasileira.
Também informa que essa política não tem pudor de se alinhar com países conhecidos por suas posições retrógradas em relação a essa matérias. O Itamaraty empurra o Brasil, cada dia mais, em direção a empreitadas que têm sido objeto de chacota internacional, como por exemplo, qualificar como “consenso” uma aliança que não espelha a anuência multilateral.
A Declaração de Genebra é mais uma tentativa de erodir a estrutura global de direitos humanos.
O minoritário "consenso" que a impulsiona não é uma plataforma legítima de negociação de acordos no Sistema ONU —que conta com 193 Estados membros—, em especial no que diz respeito aos direitos das meninas e mulheres.
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