Nos EUA, uma rede de notícias pagas por interesses políticos toma o lugar de jornais locais

Republicanos e firmas de relações públicas encomendam coberturas em operação com quase 1.300 sites locais

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Davey Alba e Jack Nicas | The New York Times

As instruções eram claras: escrever um artigo criticando como hipócrita a democrata Sara Gideon, do Maine, candidata a uma vaga fortemente disputada no Senado americano.

A repórter freelancer Angela Underwood, do interior de Nova York, aceitou o trabalho proposto por email, pelo qual receberia US$ 22 (R$ 123). Ela entrou em contato com o porta-voz da senadora Susan Collins, a adversária republicana de Gideon, e escreveu o artigo com base em suas acusações de que Gideon seria hipócrita por criticar grupos políticos obscuros e então aceitar a ajuda deles.

Sara Gideon, candidata democrata ao Senado Americano que foi alvo de reportagem financiada por agente republicano - Brian Snyder - 14.out.2020/Reuters


O artigo curto foi publicado pelo Maine Business Daily. Foi citado extensamente pelo porta-voz de Susan Collins, mas não atraiu comentários da campanha de Gideon.

Então Underwood recebeu outro email: seu editor lhe disse que o “cliente” que encomendara o artigo queria acrescentar mais detalhes ao texto.

Segundo emails e de acordo com o histórico de publicação do texto, revisto pelo New York Times, o cliente era um agente republicano.

O Maine Business Daily faz parte de uma rede rapidamente crescente de quase 1.300 sites que visam preencher o vazio deixado pelo desaparecimento de jornais locais em todo o país. Mas a rede, agora presente nos 50 estados dos EUA, não se fundamenta em jornalismo tradicional, e sim em propaganda política encomendada por dezenas de think tanks conservadores, agentes políticos, executivos de empresas e profissionais de relações públicas, conforme constatou a investigação do NYT.

Os sites aparentam ser sites de jornalismo local comuns, com títulos como Des Moines Sun, Ann Arbor Times e Empire State Today. Nos bastidores, porém, muitas das reportagens publicadas são dirigidas por grupos políticos e firmas de relações públicas corporativas com o intuito de promover um candidato republicano ou uma empresa ou de difamar seus rivais.

A rede é comandada por Brian Timpone, repórter de televisão que se converteu em empreendedor na internet. Timpone construiu a rede com a ajuda de várias outras figuras, incluindo um consultor texano de gestão de marcas e um radialista conservador de Chicago.

O NYT descobriu detalhes sobre a operação através de entrevistas com mais de 30 antigos e atuais funcionários e clientes, além de milhares de emails internos entre repórteres e editores trocados durante vários anos. Funcionários da rede compartilharam emails e o histórico do software de edição do site, que revelou quem encomendara dezenas de artigos e como.

Timpone não respondeu a diversas tentativas de contatá-lo. Muitos de seus executivos não responderam a pedidos de comentário ou os recusaram.

A rede de Timpone tem mais do dobro do número de sites que a maior cadeia de jornais dos Estados Unidos, a Gannett.

Os sites de Timpone geralmente não divulgam informações abertamente falsas, mas a operação é baseada na enganação e passa longe de critérios jornalísticos comuns como imparcialidade e transparência.

Apenas algumas dezenas dos sites revelam o fato de serem financiados por grupos de interesses. Organizações noticiosas tradicionais não aceitam pagamento por artigos; a Comissão Federal de Comércio (FTC, Federal Trade Commission) exige que textos de propaganda que tenham a aparência de artigos de jornalismo sejam claramente rotulados como anúncios.

Em suas páginas institucionais, a maioria dos sites declara que visa “fornecer informação objetiva, movida por dados, sem viés político”. Mas em abril, segundo um email ao qual o NYT teve acesso, um editor da rede lembrou aos colaboradores que “os clientes querem que seus textos tenham um viés político conservador —logo, evitem escrever textos que tratem apenas de um legislador ou projeto de lei democrata etc”.

Outras organizações noticiosas já levantaram preocupações sobre o viés político de alguns dos sites. Mas a extensão do logro vem sendo ocultada há anos graças a contratos de confidencialidade assinados por redatores e à rede confusa de empresas que comanda os jornais. Essas empresas receberam pelo menos US$ 1,7 milhão (R$ 9,5 milhões) de grupos conservadores e campanhas políticas republicanas, segundo registros tributários e relatórios de financiamento de campanhas. Foram os únicos pagamentos que puderem ser rastreados em registros públicos.

O agente republicano Ian Prior esteve por trás dos artigos sobre Sara Gideon. Prior trabalhou anteriormente para o Fundo de Liderança do Senado, um comitê de ação política que gastou US$ 9,7 milhões (R$ 54 milhões) para combater Sara Gideon.

Um porta-voz de Susan Collins, a senadora do Maine, disse que a campanha responde a perguntas formuladas por “veículos de mídia de todas as vertentes e persuasões”.

Ian Prior comanda uma firma de relações públicas que promove sua capacidade de conseguir cobertura em veículos de imprensa locais. Por email, ele disse que propõe artigos para uma série de veículos. Ele não respondeu a perguntas sobre se paga pela cobertura.

Alguns dos artigos mais lidos nos sites de Timpone foram compartilhados dezenas de milhares de vezes nas redes sociais. Em termos da discussão política nacional, é um alcance modesto. Mas, quando o foco se volta às cidades menores, são necessários menos leitores para criar um impacto.

Ben Ashkar, executivo operacional chefe da Locality Labs, uma das empresas ligadas aos sites, foi o único executivo da rede que deu declarações “on the record” para esta reportagem. Ele disse que não pensa que as pessoas possam pagar por cobertura jornalística.

“Espero que não”, ele disse. “Como vou saber? Honestamente, não acho que haja gente pagando.”

Grandes ambições

Timpone, que completará 48 anos este mês, entrou para a política pela porta do jornalismo. Nos anos 1990, foi âncora e repórter de estações de TV do Illinois. Mais tarde, tornou-se porta-voz do líder da minoria republicana na Câmara estadual.

Em seguida, Timpone passou a dedicar-se a virar magnata da mídia digital, substituindo a velha guarda do jornalismo no papel.

Em entrevista que concedeu em 2015 a Dan Proft, apresentador de um talk show conservador numa rádio de Chicago, Timpone disse que “os grandes jornais metropolitanos são como uma mosca na sua casa que começa a voar devagar e você consegue pegá-la com a mão”.

Cerca de dez anos atrás, Timpone fundou o serviço Journatic, voltado à automatização e terceirização do trabalho de repórteres, e vendeu o serviço a duas das maiores redes de jornalismo do país, a Hearst e a Tribune Publishing. Ele usou softwares rudimentares para converter dados públicos em notícias curtas. Esses conteúdos ainda preenchem a maioria de seus sites. No caso dos artigos escritos por humanos, ele simplesmente pagou menos aos jornalistas, chegando a usar profissionais nas Filipinas que assinaram com nomes falsos.

Em 2012, quando o programa de rádio "This American Life” revelou sua estratégia, Timpone defendeu sua abordagem como sendo uma maneira de salvar o jornalismo local.

Por volta de 2015 ele formou uma parceria com Proft e lançou uma rede de sites e jornais gratuitos que enfocavam as áreas rurais e suburbanas do Illinois.

As publicações pareciam veículos noticiosos típicos que cobriam suas comunidades. Mas um comitê de ação política controlado por Proft pagou às empresas de Timpone pelo menos US$ 646 mil (R$ 3,6 milhões) entre 2016 e 2018, segundo registros estaduais de finanças de campanha. O dinheiro veio em grande parte do megadoador conservador Dick Uihlein, diretor da empresa Uline, fornecedora de materiais para transportes marítimos.

Depois de receber queixas, o Conselho Eleitoral do Illinois instruiu os jornais a revelar que haviam sido financiados pelo comitê de Proft. Agora um pequeno informe em suas páginas institucionais diz que os sites são financiados “em parte por grupos de defesa de causas que compartilham nossa crença no governo limitado”. Os sites do Illinois são virtualmente os únicos na rede de Timpone que contêm esse informe.

O papel de Timpone na rede é confirmado por documentos públicos e internos. Em emails aos quais o NYT teve acesso, ele distribuiu pautas, e editores o descreveram como o executivo-chefe da rede. Timpone também já disse publicamente e em documento registrado junto à Comissão Eleitoral Federal que ele comanda alguns dos sites.

Mas a teia de empresas por trás da rede dificulta o rastreamento do dinheiro por trás dos sites e até mesmo a direção de Timpone. Não está claro se a dificuldade é intencional. Essas empresas incluem a Metric Media, Locality Labs, Newsinator, Franklin Archer e Interactive Content Services. Tampouco está claro exatamente quem são os proprietários das empresas.

O NYT conversou com 16 repórteres que já trabalharam para Timpone. Muitos disseram que passaram por cima de suas reservas em relação ao trabalho porque o pagamento era regular e trabalhos de jornalismo para freelancers são raros.

Angela Underwood, que escreveu o artigo publicado pelo Maine Business Daily, comentou que quando a intenção política ficou clara, ela também se sentiu enganada.

“Você fala que nunca vai se vender dessa maneira. Você critica pessoas que fazem isso”, ela comentou. “E então você acaba em exatamente a mesma posição.”

“Observadores de pautas”

Na ferramenta editorial usada por repórteres e editores dos sites de Timpone há uma lista de nomes com um título peculiar: “Observadores de pautas”. São os clientes de Timpone.

O NYT reviu a histórico por trás de dezenas de artigos na ferramenta editorial, revelando mais de 80 observadores de pautas. Muitos deles já propuseram pautas com instruções sobre quais jornalistas deveriam escrever os artigos, quem deveriam entrevistar e que perguntas deveriam fazer aos entrevistados.

Jeanne Ives, candidata republicana a uma cadeira na Câmara dos Deputados pelo Illinois, já teve um relacionamento financeiro direto com a rede.

Ives pagou US$ 55 mil (R$ 307 mil) às empresas de Timpone ao longo dos últimos três anos, segundo documentos estaduais e federais. Durante esse período, os sites do Illinois publicaram notícias predominantemente positivas sobre ela, tendo inclusive reproduzido literalmente alguns dos releases dela à imprensa.

Em entrevista, Ives disse que seus pagamentos foram para criar seu site e monitorar sua página na Wikipedia.

Um pagamento no valor de US$ 14.342 (R$ 80 mil) incluiu a anotação “anúncio-jornal”. Em um primeiro momento, a candidata não conseguiu explicar a anotação. Mais tarde ela ligou de volta para dizer que Timpone havia comprado anúncios no Facebook para ela.

Perguntada se estava pagando para ter cobertura jornalística positiva, ela respondeu: “De jeito nenhum. Posso lhe garantir que não está acontecendo nada disso".

Ives é citada como observadora de pauta. Disse que não sabe o porquê disso.

Tradução de Clara Allain

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