Ex-apresentadora se torna primeira governadora-geral indígena do Canadá

De origem inuíte, Mary Simon construiu trajetória defendendo o direito de populações nativas

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São Paulo

“Eu nasci Mary Jeannie May, no Québec Ártico, conhecido como Nunavik. Meu nome inuíte é Ningiukudluk.” Nova governadora-geral do Canadá, Mary Simon, 73, fez questão de incluir a mesma frase tanto no seu discurso de nomeação como no dia de sua posse, em 26 de julho.

Ao ressaltar de onde veio, Simon demonstra a importância de ser a primeira indígena a assumir o posto. Ainda que o cargo tenha pouca influência —ela representa a rainha Elizabeth 2ª, da Inglaterra, e comanda as Forças Armadas—, sua nomeação vem em um momento de polêmica, com a revelação de valas comuns encontradas em escolas residenciais, onde os indígenas estudavam.

Mary Simon discursa após tomar posse como governadora-geral, a primeira indígena no cargo
Mary Simon discursa após tomar posse como governadora-geral, a primeira indígena no cargo - Patrick Doyle - 26.jul.21/Reuters

De origem inuíte, nação indígena de esquimós que representava 0,2% da população canadense em 2016, Mary Jeannie estudou na escola federal Fort Chimo, estabelecimento diferente daqueles envolvidos na controvérsia recente, mas que foi alvo de processos por maus-tratos.

Filha de uma inuíte e de um canadense branco de Manitoba, no centro do país, desde cedo ela viveu entre os dois mundos.

“Parte da minha tradição cultural como uma inuíte são os fortes laços criados através de gerações”, relatou no discurso de nomeação. “Minha avó e minha mãe me ensinaram a sempre ter orgulho de quem sou e manter minha mente aberta para outros pontos de vista.”

Já da parte de seu pai, que trabalha na varejista Hudson’s Bay, ela diz ter aprendido sobre o mundo não-nativo. “Combinar essas experiências me permitiu ser uma ponte entre pessoas, não importa onde morem, o que esperam ou o que precisam superar.”

Com pouco mais de 20 anos, foi trabalhar como apresentadora de rádio na CBC, em Montréal, maior cidade da província de Québec. Nesse trabalho, ela traduzia e explicava as notícias ao redor do mundo para a audiência inuíte no Ártico.

Foi após seu período na emissora canadense, no entanto, que mergulhou de vez no trabalho que a projetaria nacionalmente: a defesa dos direitos indígenas. Ocupando uma série de cargos executivos na Associação Inuíte do Québec do Norte e na organização Inuit Tapiriit Kanatami (inuítes estão unidos no Canadá, em tradução livre), ela ajudou a negociar o Acordo James Bay e Québec do Norte em 1975, tido como o primeiro tratado moderno do país.

O pacto entre os indígenas crees e inuítes, o governo da província e a fornecedora de energia Hydro-Québec foi um marco para o país. Segundo ele, os direitos dos povos indígenas na James Bay foram reconhecidos pela primeira vez —o que incluía direito exclusivo a caça e pesca e governo independente em algumas regiões. O texto também previu recompensa financeira em troca da construção de barragens para hidrelétricas.

Já em 1982, Simon foi eleita presidente da empresa Makivik, criada para administrar os recursos recebidos pelos inuítes a partir do Acordo James Bay e Québec do Norte. No mesmo ano, ao lado de outros líderes indígenas, a ativista esteve diretamente envolvida nas negociações para incluir os direitos dos aborígenes (que abrangem as diferentes etnias nativas do país) na Constituição canadense.

Dois anos depois, ela se engajou na discussão sobre equidade de gênero no conjunto de leis do país, protagonizando um embate com o então premiê Pierre Trudeau —pai de Justin Trudeau, que 37 anos depois a indicaria para ser governadora-geral, no que ele chamou de “um passo histórico” para o Canadá.

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Essa não foi, porém, a primeira vez que Simon foi pioneira ao assumir um posto. Nos anos 1980 e 1990, ela manteve seu trabalho em diferentes organizações ligadas à defesa dos direitos dos povos indígenas do país, até ser nomeada embaixadora de Relações Circumpolares, em 1994, tornando-se a primeira inuíte a deter tal cargo.

Foi nessa época que ela se casou, pela terceira vez, com Whit Fraser, com quem teve três filhos: Richard, Louis e Carole. O sobrenome Simon ela mantém desde o primeiro casamento, ainda na década de 1960.

Simon permaneceu como embaixadora até 2003. Nesse período, trabalhou com os países dessa região para fortalecer a cooperação e negociou a criação do Conselho do Ártico.

Já nas décadas de 2000 e 2010, ela voltou a se dedicar às organizações indígenas, cumprindo dois mandatos como presidente da Inuit Tapiriit Kanatami. Também fundou a Fundação de Crianças e Jovens do Ártico e liderou o Comitê Nacional para Educação Inuíte.

Sua robusta trajetória, no entanto, não a poupou de críticas.

Uma das principais é o fato de não falar francês, uma das duas línguas oficiais do país. Simon é bilíngue, mas em inglês e inuíte. Em um artigo para o site The Conversation, Nicole Rosen, professora e pesquisadora de interações linguísticas na Universidade de Manitoba, explica que a política atual do país coloca uma hierarquia, estando as duas línguas oficiais acima das demais. “Ser bilíngue só ‘conta’ se for francês-inglês”, escreve.

Rosen lembra que remover as crianças indígenas de suas famílias para aprender a língua tida como oficial, em escolas hoje alvo de polêmicas e processos, resultou em um “fim abrupto da transmissão familiar linguística de quase todos os mais de 70 idiomas indígenas falados neste país”.

“Enquanto o francês permanece como uma língua minoritária no Canadá, muitos idiomas indígenas estão perto da extinção”, escreve a pesquisadora. Os dados do censo de 2016 comprovam a afirmação, já que apenas 0,6% da população tem como língua materna um dos idiomas aborígenes, e para 0,3% essa língua é a principal falada em casa.

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