Quando Putin colocou arsenal nuclear em alerta, Biden escolheu não provocar

Presidente dos EUA optou por tentar desescalar conflito em meio a temor de confronto direto entre superpotências

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David Sanger William J. Broad
Washington | The New York Times

Quando, no domingo (27), Vladimir Putin declarou que estava colocando suas forças nucleares em "prontidão especial para combate" –um estado de alerta intensificado que remete a alguns dos momentos mais perigosos da Guerra Fria—, o presidente Joe Biden e seus assessores tiveram uma escolha a fazer.

Eles podiam adotar iniciativa correspondente e colocar as forças americanas em Defcon 3 –que os cinéfilos conhecem como o momento em que a Força Aérea coloca seus bombardeiros de prontidão, enquanto silos nucleares e submarinos são postos em alerta máximo.

Ou o presidente poderia em grande medida ignorar o que foi dito e enviar assessores para mais uma vez retratar Putin como um perigo, ameaçando deslanchar o Armagedon por uma guerra que ele próprio começou sem provocação prévia.

Míssil balístico continental lançado durante exercício de forças nucleares em lugar desconhecido na Rússia - Ministério da Defesa da Rússia - 19.fev.22/Reuters

Por enquanto, pelo menos, Biden optou por desescalar. A embaixadora dos EUA nas Nações Unidas lembrou ao Conselho de Segurança na tarde do domingo que a Rússia "não está sob ameaça alguma" e repreendeu Putin por "mais um passo escalatório e desnecessário que ameaça a todos". A Casa Branca deixou claro que o status de alerta dos EUA não tinha mudado.

Mas para muitos da administração que falaram no domingo sob a condição de se manterem anônimos, o que ocorreu deixou muito claro com que rapidez a crise na Ucrânia pode converter-se num confronto direto entre superpotências –e como ainda é possível que isso aconteça, na medida em que Putin testa até onde pode ir e ameaça lançar mão da arma máxima para chegar lá.

E a explosão de raiva dele ressaltou mais uma vez a dúvida que percorre a comunidade de inteligência dos EUA sobre o estado mental do líder russo, homem previamente descrito como pragmático, astuto e calculista. O ex-diretor de inteligência nacional James Clapper disse em público no domingo algo que algumas autoridades vêm dizendo reservadamente desde que o líder russo começou a acusar a Ucrânia de cometer genocídio e alegar que ela estaria desenvolvendo armas nucleares próprias.

"Pessoalmente, acho que ele está desequilibrado", disse Clapper na CNN. "Me preocupo com sua acuidade e com seu equilíbrio emocional."

Outros especulam que talvez Putin queira criar essa impressão, justamente para intensificar os receios de Washington. Preocupações semelhantes foram responsáveis pela decisão de que Biden, que passou o fim de semana em Delaware, não responderia às ameaças de Putin.

Foi a segunda vez em uma semana que Putin lembrou ao mundo e a Washington que possui um arsenal enorme e pode sentir-se tentado a fazer uso dele. Mas o que tornou notável essa explosão de raiva mais recente foi o fato de ter sido encenada para a televisão e de Putin ter dito a seus generais que estava agindo devido aos "comentários agressivos" do Ocidente sobre a Ucrânia.

O oficial militar de mais alta patente da Rússia, Valeri Gerasimov, ficou impassível enquanto Putin lançava sua ameaça. Algumas pessoas ficaram especulando sobre o que ele estaria pensando e como poderia reagir.

"Foi bizarro", disse Graham T. Allison, da Universidade Harvard, cujo estudo sobre o tratamento dado pela administração Kennedy à crise dos mísseis cubanos, "Essence of Decision", foi lido por gerações de estudantes de relações internacionais, incluindo muitos membros da equipe de segurança nacional que cerca Biden hoje. O fato de Putin ter citado "comentários agressivos" como justificativa para colocar um dos maiores arsenais nucleares do mundo em estado de alerta pareceu ao mesmo tempo desproporcional e difícil de explicar, ele disse. "Não faz sentido."

Alison, que trabalhou no projeto para desativar milhares de armas nucleares pertencentes no passado na União Soviética e localizadas principalmente na Ucrânia, disse que o incidente está "intensificando o receio de que a percepção de realidade de Putin pode estar se enfraquecendo".

A questão agora é como Gerasimov vai traduzir em ação a ordem de Putin, expressa em termos vagos, para que as armas nucleares ficassem em "prontidão especial de combate". A resposta deve ficar clara nos próximos dias.

Um enorme aparato de detecção nuclear operado pelos Estados Unidos e seus aliados monitora as forças nucleares da Rússia em todos os momentos, e especialistas disseram que não se surpreenderão se verem bombardeiros russos tirados de seus hangares e carregados com armas nucleares, ou se submarinos repletos de armas nucleares deixarem seus portos e saírem ao mar.

Tanto a Rússia quanto os EUA conduzem exercícios que reproduzem diversos níveis de status de alerta nuclear, de modo que a coreografia desses movimentos é bem entendida por ambos os lados. Qualquer coisa que divergisse da prática usual quase certamente seria perceptível.

As forças nucleares baseadas em terra –os mísseis balísticos intercontinentais guardados pelos dois países em silos— estão sempre em estado de prontidão, algo que é uma das bases da estratégia de "destruição mutuamente assegurada" que ajudou a evitar enfrentamentos nucleares, mesmo nos momentos mais tensos da Guerra Fria.

Seja o que for que pensarmos do julgamento de Putin, a decisão de colocar as forças em alerta no meio de tensões extraordinárias relativas à invasão da Ucrânia foi altamente incomum. Ela chegou apenas alguns dias depois de Putin ter avisado os EUA e outras potências da Otan para ficarem de fora do conflito, dizendo que "as consequências seriam tais como vocês nunca viram em sua história inteira".

Tudo isso pôs um ponto final, pelo menos por enquanto, nas discussões entre Rússia e Estados Unidos sobre o que farão dentro de quatro anos, quando terminar a vigência do único tratado nuclear remanescente entre os dois países, o chamado Novo Start.

O tratado limita cada um dos lados a 1.550 armas estratégicas posicionadas, muito menos que as dezenas de milhares que havia no auge da Guerra Fria. Mas não abrange as armas táticas menores projetadas para uso no campo de batalha, que são um grande motivo de preocupação na crise atual.

Do mesmo modo que Putin na semana passada alegou que os EUA têm planos de colocar tais armas em território ucraniano –um dos muitos argumentos que usou para justificar a invasão—, as autoridades americanas receiam que o próximo passo de Putin será colocá-las na Ucrânia, se ele conseguir tomar o país, e na Belarus.

Até a semana passada os dois países estavam tendo reuniões regulares para discutir novos regimes de controle de armas, incluindo uma renovação do Tratado sobre Armas Nucleares de Alcance Intermediário, que o presidente Donald Trump abandonou em 2019. Mas na semana passada os EUA anunciaram a suspensão dessas negociações.

O receio imediato é que o nível de alerta intensificado afrouxe propositalmente as salvaguardas sobre as armas nucleares, aumentando a possibilidade de elas serem usadas, por acidente ou intencionalmente.

Nos últimos anos, a Rússia adotou uma doutrina que reduz o limiar para o uso de armas nucleares e para lançar ameaças públicas de usá-las em ataques atômicos mortais.

"É o que ele faz", disse em entrevista Hans M. Kristensen, diretor do Projeto de Informação Nuclear da Federação de Cientistas Americanos, um think tank sobre política pública global, com sede em Washington. "É um discurso que visa meter medo. Vamos ver para onde ele vai com esse discurso. Esta guerra começou há quatro dias e ele já fez duas ameaças nucleares."

O anúncio de Putin no domingo foi feito horas depois de a Europa e os EUA anunciarem novas sanções, incluindo a proibição de alguns bancos russos usarem o sistema de mensagens financeiras Swift, que possibilita pagamentos internacionais, e a paralisação da capacidade do banco central russo de estabilizar o rublo em queda.

Matthew Kroening, professor de ciência política e diplomacia na Universidade Georgetown e especialista em estratégia atômica, disse que a história está cheia de casos em que as potências nucleares ameaçaram seus rivais com seus arsenais. Ele destacou a crise de Berlim no final dos anos 1950, a crise dos mísseis cubanos em 1962, a guerra de fronteira entre a União Soviética e a China em 1969, a guerra árabe-israelense de 1973 e a guerra entre Índia e Paquistão em 1999.

"Os estados dotados de armas nucleares não podem travar guerras nucleares porque isso os colocaria em risco de extinção, mas podem ameaçar fazê-lo, e fazem", Kroening destacou no domingo. "Eles trocam ameaças nucleares, ameaçam elevar o risco de guerra na esperança de que o outro lado recue e diga ‘não vale a pena travar uma guerra nuclear por isso’."

Tradução de Clara Allain

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