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América Latina

Ataque a Cristina Kirchner mostra que demonização aumenta risco de violência política

Argentina é expoente de onda da chamada polarização afetiva, que desumaniza os adversários

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Diogo Schelp

Jornalista e comentarista político, foi editor-executivo da Veja. É pesquisador do Instituto de Relações Internacionais da USP

São Paulo

O fracassado atentado contra a vice-presidente Cristina Kirchner na quinta-feira (1º) foi a primeira tentativa de magnicídio na Argentina desde o fim da ditadura militar, na década de 1980. Naqueles anos, o presidente Raúl Alfonsín (1983-1989) sofreu dois ataques frustrados contra sua vida, um durante o exercício do cargo e o outro depois, em campanha eleitoral. Em 1986, foi uma bomba encontrada e desarmada pela segurança presidencial. Em 1991, durante um comício, um disparo de revólver que falhou.

Mulher com cartaz contra a violência em ato de apoio à vice-presidente argentina Cristina Kirchner, em Buenos Aires - Emiliano Lasalvia - 2.set.22/AFP

Em comum entre o episódio de então e a tentativa de assassinato de agora, além do golpe de sorte que fez as armas falharem, há o clima de polarização que marca a política nacional. Os anos de Alfonsín foram marcados pela conturbada transição para a democracia e pelo julgamento da Junta Militar que governou o país no período anterior. Já a Argentina de hoje se caracteriza pelo ferrenho antagonismo entre kirchneristas e antikirchneristas, reforçado nas últimas semanas pelo indiciamento de Cristina Kirchner pelo crime de corrupção em seus mandatos presidenciais (2007-2015).

Não é por acaso, também, que temos visto um crescente número de casos de crimes ou ameaças com motivação política em outros países da América do Sul, como os planos para matar candidatos presidenciais na Colômbia e os eventos recentes no Brasil, incluindo-se aí a facada em Jair Bolsonaro durante a campanha presidencial de 2018 e o assassinato de um militante petista por um policial bolsonarista em Foz do Iguaçu (PR).

Relacionar episódios de violência política com o clima de polarização não é meramente intuitivo. A associação tem respaldo em estudos acadêmicos.

Em uma pesquisa publicada há dois meses, o cientista político James Piazza, da Universidade Estadual da Pensilvânia, nos Estados Unidos, baseou-se em entrevistas com 1.800 cidadãos americanos e na análise de 85 países democráticos para concluir que, de fato, indivíduos com alto grau de adesão a um dos extremos políticos são mais propensos a apoiar agressões contra adversários e que o nível de violência política tende a ser maior em nações com um contexto de polarização elevado.

Mas não qualquer polarização. Alguns cientistas políticos dividem a polarização política em dois tipos, a ideológica ou partidária e a afetiva ou "tribal". A polarização ideológica é a clássica divisão entre esquerda e direita ou entre apoiadores de partidos antagônicos, com programas bem definidos. Esse tipo pode ser benéfico para o fortalecimento de democracias, pois estimula o debate de ideias e projetos.

A polarização afetiva, por sua vez, combina a adesão forte a uma identidade política com a intensa aversão a qualquer um que se encontre no espectro oposto e é visto como inimigo. Nesse tipo, há uma tendência a deslegitimar e atacar os adversários ou os líderes do grupo contrário. Discussões sobre programas ou temas de políticas públicas são secundárias.

É justamente a polarização afetiva que está relacionada a uma maior incidência de violência política. E isso ocorre, segundo Piazza, por três fatores.

O primeiro é a demonização e a desumanização dos integrantes do grupo político oposto, geralmente atribuindo-se a eles características caricaturais de imoralidade, de maldade ou de ameaça à sociedade. É o que Bolsonaro faz, por exemplo, quando diz que o embate com o PT é uma guerra do bem contra o mal, de quem é a favor da vida contra quem é contra a vida. Ou quando afirma que está numa missão, até a morte se preciso, para livrar o Brasil da ameaça comunista. E é o que Lula faz quando chama Bolsonaro de "demônio" ou quando seus apoiadores qualificam todos os bolsonaristas de fascistas.

A desumanização dos adversários acaba por legitimar o uso da violência, pois quem representa o mal ou é desprovido de atributos humanos pode ser combatido por qualquer meio.

O segundo fator é o sentimento de superioridade moral, o que justifica a intolerância contra argumentos ou visões de mundo divergentes e cria um contexto em que a política é vista como uma atividade ganha-perde, ou seja, em que só há vitoriosos ou derrotados, sem admitir um meio-termo ou a possibilidade de que todos possam se beneficiar com a busca do consenso.

O terceiro fator é a facilidade que os líderes dos extremos políticos têm para mobilizar seus apoiadores. Isso é decorrência do comportamento de tribo na polarização afetiva, ou seja, a tendência de recorrer à antipatia em relação aos adversários como forma de reforçar a afinidade e a lealdade ao próprio grupo. A facilidade de mobilização coletiva legitima e cria condições propícias para atos de violência.

Os traços de polarização afetiva são evidentes, atualmente, na Argentina, no Brasil e também no Peru, no Chile e na Colômbia. Em todos esses países, é comum ver grupos políticos adversários acusando-se mutuamente de promover discurso de ódio e de fazer incitação à violência. Na Argentina, o tom das acusações intensificou-se desde a divulgação da denúncia criminal contra Cristina Kirchner, que se diz vítima de perseguição política.

No Brasil, os pesquisadores Mario Fuks e Pedro Marques, da Universidade Federal de Minas Gerais, mediram com base em entrevistas, em estudo divulgado em 2020, os dois tipos de polarização política, confirmando a predominância no país da versão afetiva, enquanto a ideológica é apenas moderada, sem uma oposição consistente entre ideias de esquerda e direita.

O contexto aqui e nos países vizinhos, portanto, é favorável a episódios de violência política, legitimados pela demonização de adversários e pelo sentimento de superioridade moral.

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