É impensável militares apoiarem ditadura, diz chefe da Marinha de Portugal

Famoso por liderar vacinação contra a Covid, Gouveia e Melo descarta uso político de visita ao Brasil para 200 anos da Independência

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Lisboa

Em viagem oficial ao Brasil para os festejos do Bicentenário da Independência, o chefe do Estado-Maior da Armada portuguesa, almirante Henrique Gouveia e Melo, 61, se tornou uma celebridade em seu país. No comando da força-tarefa de vacinação contra a Covid-19, ele ajudou a consolidar Portugal como um dos líderes mundiais na imunização.

A projeção pública obtida no combate à pandemia gera especulações sobre uma futura candidatura à Presidência —em julho, uma pesquisa o indicou na liderança entre possíveis candidatos ao Palácio de Belém na ainda distante eleição de 2026. O militar prefere não comentar.

O chefe da Marinha portuguesa, Henrique Gouveia e Melo, em visita a um centro de vacinação para Covid nos arredores de Lisboa; almirante coordenou campanha considerada líder na Europa - Patricia de Melo Moreira - 13.set.21/AFP

Nascido em Moçambique, quando o país era colônia portuguesa, Gouveia e Melo viveu no Brasil na adolescência, entre 1975 e 1979. Chegou a prestar vestibular em São Paulo, mas diz que a vontade de retornar a Portugal falou mais alto. "Eu tenho uma relação muito pessoal com o Brasil, parte da minha família ficou no país", conta.

Embora tenha participado das celebrações do 7 de Setembro no Rio de Janeiro, onde o presidente Jair Bolsonaro (PL) transformou atos cívicos em comício eleitoral, o almirante minimizou o risco de aproveitamento político da imagem da Marinha portuguesa. "Nós nos posicionamos na perspectiva de longo prazo, de algo que une o povo português e o brasileiro", afirma. "Isso é muito mais importante do que qualquer evento relacionado com quatro ou oito anos de períodos eleitorais ou políticos."

Gouveia e Melo afirmou que os valores democráticos são indissociáveis das Forças Armadas. "É impensável para nós, militares portugueses, não defender a democracia." Dias antes de embarcar para o Rio a convite da Marinha brasileira, ele conversou com a Folha em Lisboa.

O senhor não teme que a presença da Marinha portuguesa nos eventos de 7 de Setembro, com atos de campanha de Jair Bolsonaro, seja objeto de instrumentalização política? Temos de olhar para isso numa perspectiva histórica: são as comemorações dos 200 anos da Independência do Brasil. Depois, há uma perspectiva de curto prazo que eu não vou comentar, porque só tem a ver com a política interna brasileira.

Nós nos posicionamos na perspectiva de longo prazo, de uma coisa que une o povo português e o povo brasileiro. A Marinha do Brasil é tão descendente da Marinha do Vasco da Gama como nós. Isso é muito mais importante do que qualquer evento relacionado com quatro ou oito anos de períodos eleitorais ou políticos.

O sr. considera que as Forças Armadas têm um papel na defesa da democracia? As Forças Armadas são essenciais para a democracia. Saímos de um regime ditatorial em 1974. Hoje é impensável para nós, militares portugueses, não defender a democracia. Nunca mais, parece-me, que se possa instalar um regime ditatorial em Portugal com o apoio dos militares.

A Europa vive um momento de muita tensão com a Guerra da Ucrânia, na qual a Otan está indiretamente envolvida —Portugal é parte da aliança. A Marinha portuguesa está preparada para um conflito? Caso seja necessário participarmos na defesa coletiva e, depois, na nossa defesa individual, estamos preparados. Treinamos, somos financiados. Toda a nossa estrutura tem a ver com o fato de não querermos fazer nenhum tipo de ofensiva, mas de pertencermos a um pacto defensivo, que é a Otan, que defende a civilização ocidental e o liberalismo ocidental.

Portugal tem pela primeira vez uma ministra da Defesa. O sr. avalia que possa haver alguma resistência a uma liderança feminina, considerando que há apenas 13% de mulheres no efetivo das Forças Armadas? A Defesa não tem a ver com ser homem ou ser mulher, mas ser uma pessoa qualificada para defender o país em uma perspectiva mais abrangente —até mais política do que militar. Para nós, é com agrado que o Ministério da Defesa seja liderado por uma mulher. Significa que os problemas de gênero, pouco a pouco, estão sendo ultrapassados.

Qual o papel da Marinha no futuro do país? Portugal é essencialmente mar, por onde passam as rotas marítimas mais importantes da Europa Ocidental e do Ociente. Se nós não desempenharmos um papel relevante, alguém vai fazê-lo por nós, pois não há vazios em geopolítica. Nós, portugueses, perdemos a capacidade de usar nossa geografia para benefício próprio. Portanto, vejo a Marinha como um instrumento para desenvolver esse papel geoestratégico em favor dos portugueses.

Antes de comandar a Marinha, o sr. foi responsável pela força-tarefa de vacinação em Portugal. Quando deixou o cargo, 98% da população elegível já estava vacinada, enquanto outros países europeus sofriam com hesitação. Qual foi o segredo? Foi um conjunto de fatores. Um dos principais foi que a vacinação era considerada um bem público na nossa cultura e, portanto, não houve resistência. As campanhas antivacina não tiveram sucesso.

Depois, conseguimos organizar um processo rápido, que atraiu os portugueses em vez de afastá-los. A população estava muito cansada de estar confinada, a economia estava a sofrer muito. Não gosto de individualizar, mas acho que o grande fator foi a confiança no processo e a organização. E um conjunto muito grande de profissionais de saúde.

Devido a sua atuação na força-tarefa, o sr. foi, de um dia para outro, de submarinista a celebridade. Sente um peso adicional com isso? Hoje qualquer afirmação que eu faça é vista de muitos ângulos. Todos os dias me encontro perante esse dilema de ter de explicar qualquer coisa, tendo muito cuidado para que as palavras não sejam usadas em contextos que não têm nada a ver com o que eu quis dizer.


Raio-x | Henrique Eduardo de Gouveia e Melo, 61

Nascido em Quelimane, Moçambique, é chefe de Estado-Maior da Armada de Portugal. Passou a maior parte da carreira como submarinista, ocupou vários postos de comando na Marinha e foi comandante da força-tarefa de vacinação contra a Covid-19 entre fevereiro e setembro de 2021

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