Disputa sobre pílulas abortivas nos EUA deve desafiar Suprema Corte

Decisões opostas de dois juízes também podem impactar regulamentação de outros medicamentos

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Abbie VanSickle Pam Belluck
Washington | The New York Times

Decisões opostas emitidas por dois juízes federais na última sexta-feira (7) sobre o acesso a uma pílula abortiva nos EUA provocaram um conflito entre tribunais de primeira instância que, para juristas, torna quase certo que a disputa chegue à Suprema Corte.

"O que aconteceu realmente reforça o imperativo de uma intervenção da Suprema Corte, e o quanto antes", afirma Stephan Vladeck, professor de direito da Universidade do Texas em Austin.

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Decisões conflitantes sobre pílula abortiva nos EUA devem levar tema à Suprema Corte - Michael A. McCoy - 7.mar.23/The New York Times

Um juiz federal do Texas emitiu uma decisão preliminar na sexta invalidando a aprovação pelo FDA, órgão que regulamenta alimentos e medicamentos nos EUA, da pílula abortiva mifepristona —a autorização estava vigente havia 23 anos. Assim, o acesso de pacientes ao medicamento pode ser dificultado.

Menos de uma hora depois, porém, um juiz federal de Washington emitiu uma decisão em outro caso que contradisse o texano, ordenando que o FDA não modifique a disponibilidade do medicamento no Distrito de Columbia e em mais 17 Estados.

Por enquanto, a mifepristona segue disponível. O juiz texano Matthew Kacsmaryk, nomeado pelo ex-presidente Donald Trump, sustou sua ordem por sete dias para dar tempo ao FDA de buscar uma intervenção de um tribunal de recursos. Mas, diz o professor de direito Samuel L. Bray, da Universidade de Notre Dame, "as duas decisões estão em conflito, e o conflito entre elas é insustentável".

O Departamento de Justiça já avisou que está recorrendo contra a decisão do juiz texano no Tribunal de Apelações do 5º Circuito. A pasta ainda não disse se vai abrir um recurso no caso julgado em Washington.

Essa ação, movida contra o FDA por 18 procuradores estaduais democratas, contestou restrições que a agência impõe à prescrição e à distribuição da mifepristona. Em sua decisão anunciada na sexta-feira, o juiz do caso, Thomas Rice, nomeado por Barack Obama, não sustou as restrições vigentes, mas ordenou que o FDA não faça nada para limitar o acesso atual à mifepristona.

As partes em ações normalmente aguardam as decisões de um tribunal de apelações antes de pedir uma revisão da Suprema Corte, diz Vladeck. Mas o Departamento de Justiça pode pedir que a Suprema Corte examine o caso antes mesmo disso. "Oficialmente, a Suprema Corte pode intervir assim que o Departamento de Justiça registrar uma apelação no 5º Circuito."

Juristas dizem que não é inusitado haver liminares conflitantes e que as cortes têm condições de lidar com elas. "Nosso sistema judicial, pelo modo em que está configurado, prevê que haja conflitos entre tribunais", diz a professora de direito Amanda Frost, da Universidade da Virgínia.

Quando surge um conflito, os tribunais podem procurar maneiras de restringir o âmbito de liminares ou podem buscar outras soluções para que uma parte não seja colocada numa situação impossível, diz. Ela cita um conflito na Flórida em torno de zonas de segurança em clínicas de aborto –áreas mantidas livres de manifestantes antiaborto, para permitir o acesso de pacientes e médicos.

Em 1993 foi emitida uma liminar na Flórida para proteger o Aware Woman Center for Choice. Foi uma entre dezenas de liminares semelhantes emitidas por juízes estaduais e locais quando clínicas de aborto pediram ajuda para lidar com os protestos. No outono de 1993, com semanas de diferença, a Suprema Corte da Flórida confirmou a liminar, e a Corte de Apelações do 11º Circuito, em Atlanta, a derrubou.

A Suprema Corte federal julgou o caso e confirmou a essência da liminar do tribunal estadual da Flórida.

Se o caso do Texas chegar à Suprema Corte, podem haver implicações que ultrapassam o acesso a pílulas abortivas. O tribunal pode ser provocado a avaliar os efeitos não apenas da decisão do Texas sobre pílulas abortivas, mas também da autoridade do FDA de aprovar e regular outros medicamentos.

Juristas disseram que a decisão de Kacsmaryk parece constituir a primeira vez que um tribunal ordenou a revogação da aprovação de um medicamento pelo FDA. Essa decisão pode abrir a porta para a contestação judicial de outros medicamentos, como vacinas, pílulas do dia seguinte e outros fármacos ao centro de questões controversas. Também pode enfraquecer a confiança das empresas farmacêuticas no FDA e suas decisões sobre quais fármacos desenvolver e levar ao mercado.

Devido a essas consequências mais amplas para a autoridade federal e interesses comerciais, alguns especialistas opinaram que é possível que os seis juízes conservadores da Suprema Corte não apoiem automaticamente uma ordem que enfraqueceria a autoridade do FDA.

Ameet Sarpatwari, advogado e professor de medicina na Escola Médica de Harvard, diz que o histórico de pelo menos dois dos juízes conservadores sugere que eles possam rejeitar a decisão do juiz do Texas devido à "turbulência incrível que pode ser provocada pela liminar nacional de um juiz distrital, em conjunto com a volatilidade extrema que ela desencadeará no mercado farmacêutico".

O caso do Texas atraiu atenção adicional porque foi movido em Amarillo, divisão local que conta com um juiz apenas e é presidida por Kacsmaryk. Ele é autor de textos críticos a Roe vs. Wade, que garante o direito ao aborto, e é defensor de longa data de causas conservadoras. Ele trabalha para uma organização jurídica conservadora e é um dos diretores de uma organização que oferece alternativas ao aborto.

Especialistas dizem que a linguagem da decisão de Kacsmaryk reforçou a preocupação provocada por sua visão pessoal sobre o aborto. "Isto não soa como um parecer judicial. Soa como uma queixa ativista", diz Sarpatwari. "Haveria várias maneiras com que o juiz Kacsmaryk poderia ter chegado ao mesmo resultado sem empregar esse grau de acerbidade e sem fazer essa reavaliação de cada ato do FDA."

Em seu parecer, o juiz usou a linguagem do movimento antiaborto. Ele escreveu que a mifepristona "acaba matando de fome o ser humano ainda não nascido" e acrescentou que o FDA determina "um protocolo medicamentoso em duas etapas: mifepristona para matar o humano ainda não nascido, seguida por misoprostol para induzir contrações para expelir o humano ainda não nascido do útero da mãe".

Tradução de Clara Allain

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