Guerra da Ucrânia reacende memória do passado trágico de Tchernóbil

Cidade que viveu desastre nuclear foi uma das primeiras pelas quais a Rússia passou quando invadiu o país vizinho

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Marc Santora
Zona de exclusão de Tchernóbil | The New York Times

O pior desastre nuclear do mundo, ocorrido a apenas alguns quilômetros de distância de Halina Volochina, 74, não a fez abandonar sua casa em Tchernóbil, em 1986. Não seriam soldados russos, portanto, que apareceram em sua porta há pouco mais de um ano, que a afugentariam.

Em vez disso, durante o mês em que as forças da Rússia ocuparam esse pedaço de terra radioativo conhecido como zona de exclusão de Tchernóbil, Volochina foi tão petulante que os soldados começaram a chamá-la de "vovó furiosa do final da rua". "Eles disseram que estavam aqui para me libertar. Libertar de quê?", pergunta, antes de xingá-los.

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Halina Volochina em sua casa na zona de exclusão de Tchernóbil, na Ucrânia - Emile Ducke - 9.mar.23/The New York Times

Volochina é um dos 99 antigos moradores que ainda vivem na área —são 2.600 km² que estão entre os mais radioativos do planeta. O acidente desastroso da usina nuclear de Tchernóbil cobriu a região com uma radiação cem vezes maior do que a liberada pelas bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki juntas.

Tchernóbil também foi uma das primeiras áreas pelas quais os tanques russos passaram quando saíram da Belarus na esperança de tomar Kiev, a capital ucraniana. E um dos primeiros lugares de onde foram forçados a se retirar, no final de março do ano passado.

Um ano depois, a calamidade do passado e a tragédia atual se cruzam na região.

O acidente nuclear na Ucrânia, então parte da União Soviética, poluiu a terra por centenas de anos e expôs os perigos de uma cultura política baseada em mentiras. Contribuiu para o fim do sistema comunista e o colapso da União Soviética. A invasão pela Rússia foi justificada com outras mentiras do Kremlin: que o Estado ucraniano era um mito e que Kiev era governada por nazistas.

Agora, com cidades destruídas por toda a Ucrânia, as ruínas de Tchernóbil parecem menos sobrenaturais e mais familiares. Explosões distantes causadas por animais pisando em minas colocadas pelos russos são um lembrete de que essa terra do passado faz parte do presente.

O prédio de confinamento e o enorme sarcófago construídos para enterrar os restos do reator número 4 –onde duas enormes explosões arrebentaram a tampa de 2.000 toneladas do núcleo em chamas– há muito servem como lição do que pode acontecer quando a política interfere no esforço científico de produzir energia pela divisão do átomo. Agora, está acontecendo novamente.

Em março de 2022, as forças russas no sul da Ucrânia ocuparam e bombardearam a maior usina nuclear da Europa, em Zaporíjia, o que causou temores de mais um desastre.

Na própria Tchernóbil, soldados russos exibiram um comportamento imprudente no início da guerra. Na noite de fevereiro de 2022, quando os russos invadiram a Ucrânia, um aumento drástico nos níveis de radiação –de duas a oito vezes acima do normal– foi registrado em diferentes partes da zona de exclusão, conta Serhii Kirejev, oficial ucraniano responsável pelo monitoramento ambiental do terrítório.

"Foi o momento em que mais de 5.000 veículos militares russos entraram na zona, dirigiram pelas estradas de terra e os soldados começaram a cavar trincheiras", diz Kirejev. "Eles agitaram a poeira radioativa que estava na camada superior do solo."

Para o pequeno grupo de residentes idosos que permanecem na zona, a invasão russa e o desastre nuclear são catástrofes que marcam suas vidas —eles lembram dos dois eventos em detalhes.

Volochina era uma pilha de nervos enquanto preparava uma refeição para seus raros visitantes e pegava uma garrafa de vodca curtida com ervas locais. Três doses, diz ela, é o costume para oferecer às visitas.

Antes do colapso, conta, Tchernóbil era uma cidade comercial conhecida por sua grande beleza natural. Ela tinha 36 anos e era diretora do jardim de infância local quando o céu noturno se iluminou antes do amanhecer em 26 de abril de 1986. Nos dias após o colapso, ela se juntou a outros moradores para encher sacos de areia que foram levados por helicópteros e jogados no reator.

A ordem de desocupação veio em maio, e cerca de 200 mil pessoas foram realocadas, segundo a Agência Internacional de Energia Atômica —mas Volochina não estava entre elas. Ela se escondeu em casa depois que a polícia ordenou que os moradores saíssem e ficou mesmo quando a trancaram por fora.

No dia seguinte, ela viu os policiais atirarem em todos os cachorros. Em seguida, a energia e a água foram cortadas. Mas Volochina estava decidida a permanecer na casa construída por seu avô mais de meio século antes, às margens do rio Pripiat.

Ao contrário de quando o colapso aconteceu, o perigo dos russos que atacaram no passadou ficou imediatamente claro. Naquela noite, Evgen Markevitch, 86, escreveu em seu diário. "A tristeza chegou. Eles estão atirando. Putin é como Hitler. As tropas russas capturaram a estação nuclear de Tchernóbil."

Volochina, novamente, estava determinada a ficar. "Foi uma loucura", diz. "Uma inundação de tanques, helicópteros e todo tipo de tiros, sem parar." Em certa manhã, ela diz ter ouvido os russos gritando com um vizinho e saqueando sua casa e saiu furiosa para enfrentá-los. "Havia 15 deles com metralhadoras. Não os deixei entrar. Comecei a gritar com eles."

Dois dias depois, um vizinho avisou a Volochina que seus dois filhos adultos corriam perigo. Um deles tinha servido nas Forças Armadas ucranianas e, portanto, seria de especial interesse para os russos.

Sob o manto da escuridão, os dois homens se arrastaram até a margem do rio atrás da casa, colocaram duas bicicletas em dois pequenos barcos a motor e partiram. Eles se esconderam por mais de um mês.

"Somente quando a área foi liberada pelas Forças Armadas ucranianas eles puderam voltar", conta. O filho mais novo partiu novamente para se juntar ao Exército e, nos últimos meses, lutou em Bakhmut. Na despedida, Volochina enxugou uma lágrima e disse que esperava vê-lo em casa novamente um dia.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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