Descrição de chapéu Guerra na Ucrânia Rússia

Células neonazistas na Ucrânia estão longe do tamanho descrito por Putin

Líder russo tenta mobilizar população com fantasma do nazismo, mas especialistas alegam que não há extremismo no Estado ucraniano

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Guarulhos

Há nazismo na Ucrânia? Sim, há —mas em dimensão muito distinta daquela que o presidente russo, Vladimir Putin, tenta vender em seus discursos para a população e em diálogos bilaterais, como o que teve recentemente com seu homólogo francês, Emmanuel Macron.

A exemplo do que se dá em países como o Brasil, onde grupos extremistas avançam a galope, na nação do Leste Europeu houve proliferação de grupos neonazistas nos últimos anos. O período próximo à anexação da península da Crimeia pela Rússia, há oito anos, foi um dos principais propulsores para o crescimento do nacionalismo.

Membros de dois grupos extremistas da Ucrânia, o Batalhão Azov e o Setor Direito, reunidos durante manifestação em Kiev; nas bandeiras empunhadas, está o símbolo de um tridente, brasão do país
Membros de dois grupos extremistas da Ucrânia, o Batalhão Azov e o Setor Direito, reunidos durante manifestação em Kiev; nas bandeiras empunhadas, está o símbolo de um tridente, brasão do país - Gleb Garanich - 14.out.16/Reuters

Para os acadêmicos que acompanham a região, há uma espécie de consenso crítico sobre a tolerância do governo local com esses grupos. Um deles, o Batalhão Azov, chegou a treinar civis que se voluntariaram para lutar contra os russos, quando Putin passou a concentrar dezenas de milhares de soldados na fronteira com o vizinho.

Ainda assim, há também o consenso de que o Estado ucraniano não é nazista —e, de longe, não é o que mais tem presença de extremistas.

Um salto histórico se faz necessário para compreender a relação da Ucrânia com o nazismo e as ideologias extremistas. Jeffrey Veidlinger, professor de história e estudos judaicos na Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, lista ao menos três períodos pré-Segunda Guerra Mundial em que a população judia foi perseguida dentro do que hoje se consideram as fronteiras nacionais ucranianas.

São eles: em 1881, durante o Império Russo, quando propriedades judiais foram atacadas e dezenas morreram; na Revolução de 1905, quando a população, instigada por paramilitares russos, perseguiu e assassinou 5.000 judeus na região; e após a Revolução Bolchevique, quando cerca de 100 mil judeus morreram devido a ataques perpetrados contra eles. Os episódios são conhecidos como "pogroms".

A razão por trás disso esteve nas constantes disputas no território ucraniano que estimulavam a violência étnica. "Os judeus foram perseguidos em particular porque não tinham nenhum território concentrado no qual pudessem reivindicar soberania", afirma à Folha Veidlinger, autor de um livro sobre o assunto.

A situação escalou durante a Segunda Guerra, quando a Ucrânia já estava acoplada ao bloco soviético. O país foi ocupado pelos nazistas de 1941 a 1944. Antes da invasão, a capital, Kiev, contava com cerca de 160 mil judeus —20% da população local—, e mais de 100 mil deles fugiram temendo a violência. Data dessa época um dos maiores crimes humanitários cometidos contra os judeus.

No episódio conhecido como Babi Yar, mais de 33 mil judeus foram assassinados. O crime foi cometido por um destacamento nazista, mas a historiografia amplamente documentou o apoio de locais que, por um período, aliaram-se às tropas de Hitler na expectativa de alçar sua independência da União Soviética.

Quando o atual presidente russo emprega argumentos sobre a persistência do nazismo na Ucrânia, porém, não é bem disso que está falando. Para o historiador Michel Gherman, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), "Putin usa uma perspectiva de [Josef] Stálin, que via o nazismo de maneira específica: como algo que quer destruir a União Soviética [e, agora, a Rússia]".

"O discurso é de extrema direita. É uma narrativa stalinista, antileninista e russocêntrica", acrescenta o pesquisador, também membro do Observatório da Extrema Direita.

Aqui, mais uma vez, cabe o fio histórico. A população judaica na Ucrânia viveu dois períodos distintos na época em que o país era uma república soviética, explicam os especialistas. Durante a liderança de Lênin, quando uma política de nacionalidades foi posta de pé, grupos com características definidas, como os ucranianos, puderam manter sua identidade, num período de refluxo da violência étnica.

Sob Stálin, a coisa mudou, e a perseguição contra essa parcela populacional cresceu. "A partir da década de 1930, a União Soviética se tornou chauvinista e começou a punir a população judaica. E continuou a fazer isso mesmo após a Segunda Guerra, nas décadas de 1970 e 1980, quando a vida judaica foi severamente restringida", diz Veidlinger.

Putin, segundo os acadêmicos, estaria então mobilizando a identidade soviética e o nacionalismo, fazendo do nazismo um símbolo daquilo que ameaçaria a Rússia —ao menos nos moldes político-sociais nos quais seu governo deseja manter o país engessado.

Gherman diz haver uma diminuição das células neonazistas na Ucrânia, majoritariamente concentradas na porção leste, onde também estão as regiões separatistas pró-russas de Donetsk e Lugansk, agora reconhecidas por Putin. Desde que se tornou independente, em 1991, a Ucrânia pode ser descrita como um país que avançou no bom convívio entre a multietnicidade que contempla —são 130 etnias, segundo um censo de 2001, ainda não atualizado—, afirmam os professores.

Não deixa de ser comum, porém, que agrupamentos extremistas apropriem-se de símbolos da história do país, levando a episódios que causam confusão. Um exemplo é o uso do símbolo trizub ("tridente", em português) pelo Pravi Sektor (setor direito), uma organização de ultradireita.

Usado inclusive em algumas versões da bandeira nacional, o símbolo é o brasão do país e representa a Santíssima Trindade desde o século 10, quando o cristianismo foi introduzido na Ucrânia. Nada tem a ver com o nazismo. "Eles se apropriaram do trizub porque simboliza o Estado ucraniano independente", diz Vitorio Sorotiuk, presidente da Representação Central Ucraniano Brasileira.

Volodimir Zelenski, presidente ucraniano, é judeu. O argumento pode ser marginal para contradizer as alegações de Putin, mas ganha peso se levado em conta o fato de que, durante a campanha eleitoral que o alçou ao Palácio Mariinski, esse fato pouco ou nada foi abordado.

"Ninguém se importa. Ninguém me pergunta sobre isso", respondeu Zelenski ao jornal The Times of Israel, em entrevista concedida em janeiro de 2020 —primeiro ano de seu governo—, quando questionado sobre a relevância pública dada a sua ascendência.

O líder ucraniano perdeu três tios judeus que lutaram no Exército Vermelho. O avô paterno, também soldado, sobreviveu, e a avó, que morava em Krivi Rih, cidade no sudeste ocupada pelos nazistas, fugiu para o Cazaquistão. Lá, estudou e se tornou professora, até retornar para a Ucrânia após a guerra.

"É claro que, na Ucrânia, como em qualquer outro lugar, agora e no passado, há uma parcela que não se importa com mais ninguém além de sua própria nação. O mesmo aconteceu na Segunda Guerra e na ocupação fascista da Alemanha na Ucrânia", disse Zelenski àquela altura. "Essa atitude também foi empregada contra o povo judeu durante a era soviética. Sabemos de tudo isso. Mas nesse momento também sabemos perfeitamente que temos os menores níveis de antissemitismo na Ucrânia."

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.