Descrição de chapéu Guerra do Iraque terrorismo

Historiador busca preservar memória de cidade do Iraque tomada pelo Estado Islâmico

Omar Mohammed, autor do Mosul Eye, busca reconstruir tecido social de Mossul após violência da guerra e do terrorismo

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São Paulo

Omar Mohammed tem o medo típico dos historiadores: que o passado seja destruído. Preocupa-se, em especial, em preservar a história de Mossul, a cidade iraquiana em que nasceu e cresceu.

Uma das consequências da invasão americana do Iraque em 2003, afinal, foi a desintegração da memória coletiva do país, que mergulhou no caos. A situação chegou a um limite quando, em 2014, o Estado Islâmico tomou Mossul e promoveu visões alternativas da história.

Trabalhador do setor do petróleo caminha perto de poços incendiados em Mossul pelo Estado Islâmico
Trabalhador do setor do petróleo caminha perto de poços incendiados em Mossul pelo Estado Islâmico - Yaser Jawad - 26.nov.16/Xinhua

Mohammed decidiu combater os milicianos à sua própria maneira. Criou o blog Mosul Eye, em que, de maneira anônima, relatava o dia a dia da cidade –uma das maiores do Iraque— sob a ocupação do grupo extremista. Seus escritos viraram um valioso registro histórico.

Agora, Mohammed, 36, lança um de seus projetos mais ambiciosos. Está entrevistando os moradores de Mossul e dos arredores para registrar em áudio e vídeo suas experiências naqueles anos de terror. A meta é conseguir recolher ao menos mil desses testemunhos.

Esse tipo de trabalho se chama história oral, no jargão acadêmico. É uma modalidade antiga, apesar de nem sempre celebrada, da historiografia. A ideia é registrar a memória e as impressões das pessoas e transformá-las em um documento histórico.

É uma abordagem diferente daquela da imprensa. "Estou mais preocupado com o futuro do que com o hoje e quero preparar a cidade para seus desafios", diz. "Imagine que não tivéssemos nenhum registro da ocupação do Estado Islâmico que não houvesse sido produzido pelos terroristas ou pelo governo. Só saberíamos o que eles dissessem."

Uma das diferenças da história oral é o tratamento dado às entrevistas, que em geral são transcritas e disponibilizadas na íntegra em arquivos públicos.

"É uma responsabilidade enorme. Precisamos ter sensibilidade para lidar com o trauma das pessoas e não apenas extrair informação delas. Não é um interrogatório. É uma tentativa de ajudá-las a gravar suas histórias nas suas vozes e a ter controle sobre elas."

Mohammed conta que soube no mesmo dia da invasão do Estado Islâmico —10 de junho de 2014— que precisaria dedicar sua carreira a proteger a história da cidade. "Desde a ocupação americana de 2003, estávamos acostumados aos ataques de grupos terroristas em Mossul, mas o Estado Islâmico era diferente", diz.

"Eles estavam organizados, equipados e uniformizados. De imediato, começaram a veicular sua propaganda. Estavam manipulando o passado e substituindo-o por uma história nova. Eu tinha a responsabilidade de documentar aquilo."

O trabalho era secreto. Mohammed ia às ruas, voltava para casa e registrava suas impressões. Às vezes, arriscava-se com um celular para gravar entrevistas e tirar fotos. "Mas era perigoso demais ter um celular no bolso. Na maior parte das vezes, eu só testemunhava as coisas."

Mohammed só revelou sua identidade em dezembro de 2017, quando o Estado Islâmico já tinha sido expulso. Não que tenha deixado de haver risco, já que ainda há células terroristas. "Mas decidi que as pessoas tinham vivido o bastante no escuro, sob um apagão. Havia, também, um rumor de que o Mosul Eye era uma operação da CIA, algo que era irritante. As pessoas precisavam saber que eu era como elas."

A iniciativa de ampliar o projeto e incluir centenas de depoimentos é, para Mohammed, a sequência lógica. "Sou apenas uma pessoa com dois olhos", diz. Não é suficiente para a urgência que enxerga. "A memória de hoje não vai ser mais a mesma daqui a dez anos", afirma. Precisa ser gravada o mais rápido possível.

"Quero que este projeto seja um registro da história e que ajude a cidade a curar suas feridas. O primeiro passo é que a gente fale sobre o que aconteceu", diz. Nesse sentido, Mohammed tem tido a preocupação de não se concentrar em apenas uma das tantas comunidades étnico-religiosas do local.

Ele quer usar seu projeto para recriar o tecido social de uma cidade cujo nome, em árabe, pode ser traduzido como "conexão". Está treinando entrevistadores da minoria religiosa yazidi para entrevistar muçulmanos. "Quero que as pessoas entendam que todas elas viveram as mesmas atrocidades, que estavam todas sob o mesmo regime brutal."

As entrevistas ainda não foram tratadas e processadas, e falta também colocar legendas em inglês nos vídeos. Quem tiver interesse no material, porém, já pode pedir o acesso antecipado enviando uma mensagem para o projeto. Nos próximos meses, as gravações devem ser arquivadas na biblioteca da Universidade de Mossul e na sede do Mosul Eye, na cidade antiga.

"Não é fácil encarar a história", diz Mohammed. "Mesmo quem estava dentro de Mossul ainda não entende bem o que aconteceu. Precisamos de mais tempo para digerir."

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