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Morte de jornalista é ponta de iceberg de caso milionário de corrupção na Colômbia

Assassinato de Rafael Moreno ocorreu após profissional investigar licitações públicas na região de Córdoba

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Paloma Dupont de Dinechin
Forbidden Stories

O Projeto Rafael foi lançado em outubro de 2022 após o assassinato de Rafael Moreno, jornalista colombiano residente em Montelíbano, no departamento de Córdoba, uma das áreas mais marginalizadas e violentas do país. Rafael denunciou a corrupção e a criminalidade na região, do desvio de verbas de contratos públicos à extração ilegal de recursos naturais, um trabalho que lhe custou a vida.

Nos últimos seis meses, 30 jornalistas sob a coordenação do Forbidden Stories seguiram as investigações, para conservar as reportagens e garantir seu acesso ao maior número possível de pessoas.

Capa reportagem projeto Forbidden Stories
Investigação de consórcio jornalístico apura assassinato de jornalista colombiano e caso de corrupção local - Divulgação

O Projeto Rafael é um projeto imprescindível para a Forbidden Stories, cuja missão é levar adiante o trabalho de jornalistas assassinados. Estivemos em contato com Moreno antes de sua morte como parte do SafeBox Network, sistema que permite a jornalistas ameaçados proteger suas informações.

Dias antes de ser morto, Moreno deixou claro à Forbidden Stories que se alguma coisa lhe acontecesse ele queria que as investigações fossem levadas adiante e divulgadas mundialmente. É a primeira vez que o consórcio leva adiante o trabalho de um jornalista seguindo as instruções passadas antes de ser morto.

Para o projeto, os jornalistas do consórcio examinaram centenas de documentos e emails que Moreno ainda não havia publicado. A análise desses materiais e de documentos públicos aos quais o consórcio conseguiu acesso, além das viagens de reportagem que fizemos e dos depoimentos que colhemos em campo, nos permitiu trazer à tona um sistema de clientelismo em grande escala e corrupção endêmica.

Este projeto, publicado por 32 veículos de mídia no mundo todo, entre os quais a Folha, é uma mensagem clara aos inimigos da imprensa livre, não só na Colômbia: matar um jornalista não matará a história.



"Se você tiver que me matar, mate-me. Mas estou dizendo na sua cara: você não vai me silenciar." Foi com essas palavras, ditas numa live de 37 minutos no Facebook em 21 de julho de 2022, que o jornalista colombiano Rafael Moreno desafiou seus detratores e previu seu próprio fim.

Moreno aparece no vídeo usando chapéu e camiseta polo branca estampada com o nome de seu veículo de mídia online: Voces de Córdoba. Por mais de meia hora o jornalista investigativo denuncia a corrupção em Córdoba. Esta região ao norte de Medellín é uma das áreas mais pobres e violentas da Colômbia, além de ser um corredor estratégico do narcotráfico. É também uma das regiões com mais corrupção.

Moreno cita contratos superfaturados, obras públicas inacabadas e empresas que estavam lucrando com corrupção deslavada e desvios de recursos públicos. "Eles roubam do município", diz ele em um trecho do vídeo. "Alguém deveria revelar a corrupção nesta região."

Desde os Acordos de Paz de 2016 entre o governo colombiano e as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), Moreno se especializara em reportagens sobre corrupção e narcotráfico. Lançado em 2018, o Voces de Córdoba não poupava ninguém, de políticos a mineradoras e organizações paramilitares. O tom de Moreno e o número de seguidores de sua página –56 mil— não passaram despercebidos.

Três semanas antes de postar o vídeo, ele encontrou uma carta anônima em sua moto, acompanhada de uma bala, que ele agora exibe diante da câmera. Ele lê a carta: "Agora você sabe que nós estamos sabendo de todos seus movimentos, onde você vai, quando você acorda, quando vai dormir".

"Sabemos onde você vai para tomar um trago em Montelíbano [a cidade onde ele vivia], sabemos tudo sobre você e não vamos perdoá-lo pelo que está fazendo. Então agora, meu amigo, você já sabe que o resto do pente desta [pistola de] 9 mm te espera."

Vários meses mais tarde, em 16 de outubro de 2022, Moreno estava fechando seu bar e churrascaria, que mantinha para complementar a renda, quando um homem usando boné de beisebol entrou no restaurante, sacou um revólver e disparou três tiros em Moreno, matando-o. O assassino continua foragido.

Como ele próprio previu, Moreno foi assassinado. Mas, graças a documentos e instruções que deixou, não foi silenciado. Centenas de documentos e emails acessados pelo consórcio Forbidden Stores ajudaram a levar adiante o trabalho de Moreno sobre corrupção e desvio de verbas. Hoje, junto a 32 veículos de mídia parceiros em todo mundo, estamos publicando o resultado dessas investigações.

A apuração revela um sistema maciço de clientelismo na província de Córdoba e o provável desvio de até vários milhões de dólares em cinco municípios.

A Voz de Córdoba

Quatro dias após o assassinato de seu marido, Kiara Moreno voltou pela primeira vez ao apartamento que tinha sido o espaço de trabalho do jornalista.

A primeira coisa que chamou a atenção foi uma pilha de documentos sobre a mesa, fruto de centenas de solicitações de informações sobre licitações públicas registradas por Moreno. Na Colômbia esse tipo de solicitação é uma ferramenta poderosa para acessar informações de interesse público.

Mas, apesar de serem relativamente fáceis de preencher, podem levar a riscos para o solicitante, especialmente em regiões perigosas, como Córdoba. Moreno foi um dos poucos jornalistas a solicitá-las sem restrições. Nos dez dias antes de ser assassinado, havia apresentado quatro solicitações.

Só o jornalismo não pagava o suficiente para Moreno se sustentar. Em 2022, ele abriu um lava-jato e um bar e churrascaria ao qual deu o nome de Rafael Parilla. Toda semana ele pegava emprestado o carro de um amigo e dirigia cinco horas para comprar peixes para vender a seus vizinhos.

Apesar dessas atividades, ele também encontrava tempo para compartilhar vídeos e conteúdos em duas páginas de Facebook: "Rafael Moreno investigador" e "Voces de Córdoba". Vereadores, prefeitos, governadores e até mesmo outros jornalistas se viam em sua linha de fogo.

Maíra, a irmã de Moreno, recorda-se de lhe haver dito: "Você está indo longe demais. Estaria disposto a denunciar até sua irmã." A resposta dele: "Estaria, se você fizesse algo errado".

Amigos de Moreno disseram que ele não tinha limites quando se tratava de denunciar corrupção. "Vivia atirando cascas de banana", disse Rafael Martinez, secretário do gabinete em Puerto Libertador, a região de origem de Moreno, e amigo de longa data do jornalista. "Qualquer pessoa podia tê-lo matado."

Uma família poderosa

Ciente de estar gravemente ameaçado, no dia 7 de outubro de 2022 Moreno começou a compartilhar com administradores do Safebox Network, do Forbidden Stories, alguns elementos da investigação final na qual estava trabalhando. "Estamos empenhados numa investigação muito rigorosa, e tenho me deparado com muitos problemas", disse ele em uma ligação nove dias antes de ser assassinado.

"É um esquema em que administradores públicos, empreendedores e consórcios [de empresas locais] utilizam materiais da bacia do rio Uré em obras públicas, sem qualquer tipo de alvará, licença ou título."

Investigando em campo, Moreno tinha descoberto que dezenas de caminhões estavam sendo levados a um rio que passa ao lado de um parque nacional. Segundo ele, os caminhões estavam roubando areia do local para uso em obras públicas. Tudo isso era ilegal, segundo o jornalista. Os trabalhadores que ele entrevistou contaram que a areia retirada das margens do rio Uré era tirada sem licença ambiental, apesar de se tratar de uma área de proteção ambiental. E mais: o jornalista constatou mais tarde que o esquema estava ligado a uma das famílias políticas mais poderosas da região –a família Calle, proprietária da terra.

Em setembro de 2022, Moreno se filmou novamente –usando óculos de sol e um boné preto da Nike—, desta vez no local que ele pensava ser a cena do crime: um terreno pertencente a Carmen Água, esposa de Gabriel Calle, patriarca da família Calle, uma das seis famílias que disputam a influência política na região.

Moreno postou o vídeo em sua página no Twitter, marcando Andres, o filho de Gabriel Calle, o ministro do Interior, a Procuradoria da República, um órgão de proteção ambiental e o presidente da Colômbia, Gustavo Petro. No vídeo, denunciou o esquema de furto de recursos naturais, apontando para uma retroescavadeira a distância. O vídeo teve cerca de 1.600 visualizações.

Gabriel Calle, o patriarca, é ex-deputado regional e entre 2012 e 2015 foi prefeito de Montelíbano, cidade importante na região. Calle se encontra sob investigação por vários atos de corrupção, incluindo conflitos de interesse ilegais e enriquecimento ilícito. Sua família esteve ligada ao narcotráfico no passado: seu primo César Cura Demoya foi condenado nos EUA por tráfico de drogas e lavagem de dinheiro.

A influência política da família Calle é grande em Córdoba. Um de seus filhos, Gabriel Calle Águas, foi administrador local da campanha do atual presidente colombiano, Gustavo Petro, e chefe de gabinete do ministro do Interior, além de ser candidato a governador nas eleições regionais de outubro de 2023.

Yamir Pico, um primo de Moreno que também é jornalista, considerou a última investigação "extremamente delicada", especialmente no contexto da campanha eleitoral em curso. "Rafael tinha ido à propriedade particular dos Calle, uma família que a maioria das pessoas trata com muito cuidado porque a gente sabe do que ela é capaz", disse Pico. Após o assassinato de Moreno, três jornalistas próximos a ele que compartilharam suas reportagens sobre a família Calle receberam ameaças.

À reportagem Gabriel Calle Demoya negou qualquer responsabilidade pela retirada da areia. "O grande problema não é Gabriel Demoya, o suposto dono do local da extração ilegal", disse. "São as empresas que realizam obras com materiais tirados de pedreiras ilegais." O ex-prefeito de Montelíbano acrescentou que os caminhões em questão foram filmados numa rodovia pública e não da propriedade de sua esposa —ainda que o registro fundiário não mencione a existência de uma via pública nesse local.

Partindo dos vídeos que Moreno filmou, o Forbidden Stories identificou o dono do caminhão que Moreno disse ter sido usado para furtar recursos naturais. O caminhão pertence à construtura JV Ingenieria, cujo representante legal é Juan Carlos Amador Carrascal, que não respondeu a pedidos de comentários. Esse mesmo empreiteiro esteve ligado a um escândalo envolvendo a reforma de uma escola usando materiais de construção de baixa qualidade, que resultou na infiltração de água suja nas salas de aula.

Em 12 de outubro, quatro dias antes de ser assassinado, Moreno enviou à prefeitura um pedido de informação solicitando documentos sobre o rio Uré e o terreno dos Calle. A resposta só chegou dois dias após sua morte. Procurado, Custódio Libório Acosta Urzola, o prefeito de San José de Uré, onde fica a terra dos Calle, disse que o município "não tem conhecimento da extração de areia do rio Uré" e que vinha fiscalizando "possíveis pontos de extração de material, sem encontrar nada".

De mentor a inimigo

Se a derradeira investigação de Moreno tratou da família Calle, o maior foco do jornalista foi outro clã político. Ele estava estreitamente ligado a esse clã, que foi alvo de muitas de suas investigações ao longo de anos. Ironicamente, foi graças a ele que Moreno começou no jornalismo.

Nascido e criado em Puerto Libertador, pequena cidade do interior no sul da região de Córdoba, Moreno não estava destinado a ser jornalista. Quando era adolescente, começou a trabalhar numa mina no povoado vizinho. Deixou esse trabalho para colher folhas de coca e concluir o serviço militar. Quando voltou para casa, aos 20 anos, conheceu o homem que mudaria sua trajetória de vida: Espedito Duque.

Duque era um político carismático, hábil em atrair multidões e inspirar a confiança de outros. Seu objetivo, na época, era claro: livrar Puerto Libertador da família Carrascal, que controlava a região inteira.

Quando Moreno conheceu Duque, o político altamente simpático se promovia contando sua própria história de alguém que começou catando limões e virou candidato. Homem do povo, falava de justiça social e de dar um tratamento decente aos pobres. Moreno adorou. Com o tempo, tornou-se quase um segundo filho de Duque e levou sua família para trabalhar em sua campanha. Procurado, Duque confirmou: "Ele era como um filho para mim". "Fizemos tudo por ele", recordou Maíra, a irmã mais nova de Moreno. "Rafael era seu braço direito, era praticamente seu diretor de comunicações."

Depois de duas campanhas que terminaram em derrota e 12 anos de tentativas, Duque foi eleito em 2015, e Moreno foi trabalhar para o novo prefeito. Sua primeira tarefa era importante: instalar geradores em áreas que não tinham eletricidade. Como recompensa, a prefeitura ajudou a pagar um semestre de estudo de direito para ele. Mas pessoas próximas a Moreno dizem que naquela época ele já estava ficando desiludido com Duque. A relação entre os dois estava se desgastando.

Moreno sentia que as transformações prometidas estavam demorando a chegar. Para agravar a situação, segundo ele, o novo prefeito nomeou os mesmos funcionários corruptos que haviam servido em administrações anteriores. Em 2017, Moreno decidiu deixar a prefeitura de uma vez por todas.

Anos mais tarde, Moreno escreveu: "Lembro-me de, na época da vitória, ter beijado a mãe de Espedito Duque e tê-la agradecido por trazer nossa fonte de esperança ao mundo. Mas me equivoquei e me dói até mesmo pensar nisso. Duque nos fez pensar que ia mudar as coisas, mas ele se cercou das mesmas pessoas que criticamos por tanto tempo e que tinham atrasado nossa esperança de sermos eleitos".

Em dezembro de 2018, Moreno mudou de carreira novamente. Tornou-se jornalista. Naquele ano ele lançou o Voces de Córdoba para investigar os desmandos da administração para a qual trabalhara. Ele começou analisando contratos públicos firmados por seu antigo mentor.

Para Duque, isso pareceu um ato de vingança pessoal. "Depois que parei de apoiá-lo, ele declarou que ia fazer todo o possível para destruir o projeto político. Estava cheio de ódio, raiva e ressentimento."

Mais tarde Moreno voltou-se contra as medidas promulgadas pelo sucessor de Duque, Eder John Soto, visto por muitos como um laranja que representava os interesses do clã Duque. Eleito em 2019, Soto beneficiou-se de investimentos maciços da família de Duque, como cerca de US$ 15 mil em contribuições de campanha. Duque havia derrubado uma dinastia, mas criado outra —ele se negou a comentar o caso.

Mas, segundo funcionários locais, o ex-prefeito continuava a mexer seus pauzinhos nos bastidores. "É Duque quem decide o que é importante no município", disse um funcionário local, que por medo de represálias pediu para ficar anônimo. "Ele começa a receber visitas em sua casa a partir de umas 23h e continua até as 3h. Todo o mundo vai lá para pedir favores: contratos, cargos, recomendações."

O homem que fez os mercados tremerem

Desde o dia que deixou o governo Duque, Moreno tinha um objetivo em mente: trazer à tona provas de corrupção sistêmica em grande escala de seu antigo mentor e seu clã. O método do jornalista era simples: ir ao site do governo que compila os contratos para obras públicas, baixá-los, estudar as propostas de orçamento e execução e visitar os locais para verificar se o trabalho estava sendo feito corretamente.

O trabalho era facilitado pelo clima regulatório pouco rigoroso em vigor desde o Acordo de Paz de 2016, que facilitava o acesso a verbas públicas em áreas como Puerto Libertador, especialmente afetadas pelo conflito armado que durou mais de 50 anos.

Desde o acordo, mais de US$ 100 milhões foram investidos nos cinco municípios que compõem Puerto Libertador. Esses recursos foram reservados para uso em mais de 130 obras públicas, incluindo recuperação de rodovias, educação e saúde, além de obras habitacionais e de infraestrutura energética.

Mas ativistas dizem que muitas das obras não chegaram a ser concluídas. "Percebemos que muitas estavam inacabadas ou nem sequer tinham sido iniciadas, então começamos a redigir uma lista e ir checar as obras", disse Enyer Nieves Pinto, presidente da rede Veedurias, entidade de fiscalização civil.

Moreno começou por esses cinco municípios, aproveitando as leis progressistas de transparência para consultar os contratos e fazendo uso de seus estudos de direito para esquadrinhá-los a fundo.

O jornalista normalmente divulgava o resultado dessas investigações em sua página no Facebook. Uma de suas investigações mais conhecidas envolveu a renovação do estádio municipal de Puerto Libertador. Apesar de um contrato de mais de US$ 1 milhão e de seu prazo ter sido prorrogado diversas vezes, o projeto acabou sendo abandonado. Moreno apelidou o estádio ironicamente de Estádio Eternidade.

Nessa região pobre e violenta, assombrada por décadas de guerra de guerrilha, os valores desperdiçados no estádio deixaram muitas pessoas revoltadas. A investigação de Moreno só comprovou o que membros da comunidade já sabiam: as verbas estavam sendo desperdiçadas. E ela enalteceu o jornalista aos olhos de alguns, que enxergaram Moreno como um cruzado defensor da transparência.

Mas a atuação do jornalista também o levou a receber ameaças de grupos armados locais que recebem uma parcela do dinheiro investido em obras públicas –uma espécie de taxa de manutenção da paz que Moreno descrevia como "a vacina". Ele denunciou a "vacina" como aquilo que era –corrupção—, e isso, por sua vez, levou a uma escalada das ameaças contra ele, a partir de 2019.

Naquele ano Moreno foi designado alvo por uma facção do crime organizado chamada Caparrapos. Dois anos mais tarde ele foi sequestrado brevemente e interrogado por integrantes do Clã do Golfo, grupo armado que compartilha território com os Caparrapos. Moreno compartilhava essas ameaças com a Unidade Nacional de Proteção (UNP), agência encarregada de implementar medidas de proteção a jornalistas na Colômbia. Mas a proteção que recebia era irregular e, no dia de seu assassinato, inexistente.

Apesar do perigo, Moreno continuou a pressionar a administração Duque, não apenas publicamente mas também por meio de solicitações particulares de liberdade de informação e queixas legais. No sistema de Justiça colombiano, esse tipo de solicitação pode resultar em investigações legais e, em casos extremos, se e quando as autoridades determinarem que ocorreu fraude, pode levar a ações judiciais.

Para Walter Alvarez, um jornalista próximo de Moreno, foi esse risco legal o que mais expôs seu amigo e colega. "Uma investigação jornalística pode desaparecer com o tempo", disse. "Mas quando ela pode te colocar na prisão, a história muda totalmente de figura. Eu jamais teria ousado mexer com algo assim. Não estamos preparados para correr esse tipo de risco."

Conluio com o clã

A reportagem consultou a caixa de entrada de emails de Moreno. Ali está um documento-chave cuja existência não tinha sido revelada até agora: uma queixa administrativa formal que Moreno registrou contra Espedito Duque e seus comparsas em 5 de janeiro de 2021 –mais ou menos um ano e meio antes de ser morto— por "atos de corrupção, desvio de recursos públicos, tráfico de influência e clientelismo".

A Constituição colombiana prevê que qualquer cidadão pode registrar esse tipo de queixa. Mas a de Moreno foi especialmente detalhada. O documento de 21 páginas descreve os métodos do prefeito e alega que foram cometidos "vários tipos de crimes contra a administração pública". Moreno especifica o mecanismo de operação que Duque instituiu: criar "certo número de estruturas" para seus amigos e familiares e depois contratá-los para "facilitar o desvio de recursos públicos".

Ele escreveu: "Nunca antes foram constituídas tantas organizações sem fins lucrativos em Puerto Libertador com a finalidade única de ganhar licitações para contratos municipais".

Entre as dezenas de ONGs que Moreno citou na queixa estavam duas ligadas a Duque. Uma delas, a Serviexpress ATP SAS, foi fundada por uma pessoa ligada à mulher de Duque, Julieth Arroyo Montiel. Outra, a Renacer IPS SAS, representada pelo filho de um funcionário do governo que trabalhava para Duque, obteve dois contratos valendo mais de US$ 75 mil.

Moreno foi atrás das propriedades privadas de Duque, alegando que "seu salário como prefeito não lhe permitiria adquirir todos esses bens", que incluíam vários imóveis comerciais, uma casa de US$ 70 mil e uma fazenda. Moreno também listou obras públicas que, segundo ele, nunca chegaram a ser iniciadas. O documento não recebeu resposta até hoje.

O veículo colombiano de jornalismo investigativo Cuestión Pública e o Clip, um consórcio de veículos de imprensa latino-americanos, continuaram a apuração a partir do ponto em que Moreno parou. A análise mostra que, entre 2016 e 2022, as administrações Duque e Soto assinaram 99 contratos com empresários próximos do clã Duque cujo valor somado chega a US$ 3 milhões.

As pesquisas de nossos parceiros revelaram que apenas cinco empresas —nenhuma das quais com qualquer experiência anterior com mercados públicos— ganharam 96% das licitações da prefeitura.

A maioria dessas firmas pertence a Martin Montiel Mendoza, que, segundo fontes múltiplas, está estreitamente ligado à mulher de Duque, Julieth Arroyo. Entre 2016 e 2022 o gabinete do prefeito assinou 56 contratos, mais de metade dos quais por acordo mútuo –ou seja, nunca chegou a haver uma licitação pública— com três firmas pertencentes a Mendoza, por um total de pouco menos de US$ 1 milhão.

A primeira dessas companhias, Corporación Visión Juvenil, foi formada como organização sem fins lucrativos em 2014, um ano e meio depois de Duque ser eleito prefeito. A firma já forneceu soluções de logística para eventos esportivos e culturais, firmando 36 contratos no valor de US$ 600 mil.

Uma segunda empresa, Innova Construcciones e Inmobiliaria, fundada em 2017, firmou quatro contratos consecutivos com o prefeito para administrar parques, bibliotecas e a sede da Câmara Municipal. O primeiro desses contratos foi assinado dez meses depois de ele ser registrado na Câmara de Comércio.

A terceira firma, Serviexpress Colombia, também criada em 2017, presta serviços que incluem transportes, publicidade, recursos humanos e assistência a idosos e deficientes físicos. Entre 2019 e 2022 a Serviexpress firmou nada menos que 16 contratos por um total de US$ 200 mil. Montiel Mendoza não respondeu a vários pedidos de comentário feitos pelo consórcio.

O Cuestión Pública e o Clip também investigaram a firma que trata as águas de esgoto de Puerto Libertador, Agualcas. Durante um plenário municipal, Moreno identificara uma discrepância entre o número de ruas de Puerto Libertador ligados à rede de esgotos e o número mostrado nos mapas oficiais. Mesmo assim a Agualcas recebeu vários contratos públicos para a instalação de redes de esgoto.

A investigação do consórcio revelou que também esta firma estava sob a influência do clã de Duque. Nos anos passados desde sua eleição para prefeito, a empresa esteve nas mãos de três pessoas que trabalharam em suas campanhas eleitorais. Durante esse período, a Agualcas, que não respondeu a pedidos de comentário, beneficiou-se de 13 contratos públicos no valor de cerca de US$ 800 mil.

O Cuestión Pública e o Clip também puderam identificar um suposto associado do infame Clã do Golfo no entorno de Duque. Esse indivíduo, Júlio César Ramos Ruiz, médico do hospital de Puerto Libertador conhecido como "o doutor", foi detido pela polícia em outubro de 2019, acusado de conspiração com agravantes. Segundo relatos na imprensa, Ramos prestou assistência médica a feridos do Clã do Golfo, registrando-os no hospital sob nomes falsos para que não pudessem ser identificados pelas autoridades.

"Essa é a teoria dos acusadores", disse o advogado de Ramos, Júlio César Sánchez Moreno. "A teoria da defesa é que estamos diante de um caso de falso positivo judicial." Em 2020, Ramos foi libertado com pagamento de fiança, numa decisão controversa. Seu julgamento está marcado para 27 de abril de 2023.

Durante o período em que Ramos foi ativo no hospital de Puerto Libertador, o administrador do centro de saúde foi Eder John Soto, o sucessor de Espedito Duque como prefeito de Puerto Libertador. Várias fotos feitas entre 2016 e 2018 mostrando os dois homens sugerem que eles se conheciam e se encontravam regularmente. Ramos, Duque e Soto são amigos no Facebook. O médico esteve em contato com Juan David Duque, o filho de Espedito Duque, depois de sua prisão.

O Forbidden Stories obteve um documento indicando que, segundo o advogado do médico, Soto pretende depor no julgamento próximo em favor de Ramos, seu amigo e ex-funcionário. Soto não respondeu a diversos emails pedindo comentários. Duque, por sua vez, negou ter "apoiado a criação de entidades para beneficiar-se de contratos". "É tudo falso, absolutamente falso", disse, acrescentando que "alcançou grandes resultados" que lhe valeram "o reconhecimento de ter sido o melhor prefeito do departamento".

As ameaças chegam mais perto

Moreno era conhecido por sua impaciência. Assim que descobria fatos suspeitos, divulgava-os imediatamente. Mas quando ele foi assassinado, essas informações estavam se juntando para contar uma história de enorme corrupção e clientelismo em Córdoba. As ameaças se intensificaram.

Em 26 de setembro de 2022, Miguel David Arrieta Rivera, membro do entorno de Duque apelidado pela prefeitura de "coordenador dos trabalhadores da paz", atacou Moreno e seu colega Organis Cuadrado no Facebook, um dia depois de Moreno ter divulgado um contrato de transporte escolar superfaturado.

Apagada desde então, a postagem incluía uma foto dos dois jornalistas com os dizeres: "Esta dupla de chantagistas não são nem jornalistas nem advogados. Como teria dito meu avô, são ‘vagabundos armados’. Eles são responsáveis pelo fato de 1.200 estudantes estarem sem transporte escolar".

Três dias depois Moreno moveu uma ação por calúnia e difamação contra Rivera. "Sua mãe e seu padrasto estiveram na prisão, acusados de conspiração para cometer assassinato e tráfico de drogas, o que coloca em risco minha segurança e a de minha família", diz a ação. Foi a última queixa que Moreno registrou na vida. Procurado, Rivera disse que estava doente e impossibilitado de responder às perguntas.

Um caso de estupro e o receio de conluio com um promotor

Os ataques cada vez mais agressivos não silenciaram Moreno. Ele trouxe à tona um caso antigo que, para seu sobrinho José Fernando Bula Moreno, era "uma bomba prestes a explodir na cara dos Duque".

Em 27 de setembro de 2022, Moreno postou nas redes sociais sobre um processo por estupro de uma menor de idade no qual um dos filhos de Espedito Duque teria estado envolvido e no qual todas as acusações foram arquivadas em abril de 2017. Moreno apurava elementos indicando um acobertamento.

O jornalista deveria saber que o caso era altamente delicado, mas não se esquivou de escrever sobre ele. Moreno começou a investigar um contrato de aluguel de um apartamento envolvendo Duque e a esposa de Carlos Escobar Zapa, o promotor no caso. Advogados já haviam começado a esquadrinhar o contrato, mas Moreno queria provar que o contrato foi o motivo pelo qual a investigação foi suspensa.

Segundo o sobrinho do jornalista, Duque, com esse caso, teria "um pé na prisão". Moreno "ia fazer todo o possível para garantir que as acusações não fossem arquivadas". Uma semana antes de Moreno ser morto, ele avisou os juízes do caso que, "se vocês receberam dinheiro, vou denunciá-los".

Em 12 de outubro, cinco dias antes de ser assassinado, Moreno confidenciou a um amigo íntimo quando os dois estavam num carro: "Se tudo correr bem, teremos um mandado de prisão contra Espedito Duque."

Um documento obtido confirma que, nos dias que antecederam seu assassinato, Moreno estava reunindo materiais adicionais relacionados ao caso, apresentando um recurso para reenviar um pedido de liberdade de informação enviado 20 dias antes e que ficara sem resposta. O pedido anterior solicitara vários documentos delicados, incluindo comprovantes de pagamentos de aluguel feitos à prefeitura. Duque disse ao consórcio que não conhecia o proprietário do prédio no momento em que o contrato foi assinado.

Já o promotor Carlos Escobar Zapa disse que está separado de sua esposa desde 2015 e que nunca soube do contrato. "Ela alugou o imóvel sem meu conhecimento. Abriram um inquérito disciplinar, e eu fui inocentado", acrescentou. "Não tive nada a ver com o assunto." Um inquérito judicial ainda está em curso.

Com relação às acusações de agressão sexual, o promotor negou ter feito um acordo com Duque.

Segundo uma fonte bem posicionada no governo, pelo menos dez mulheres acusaram o filho de Duque de estupro ou agressão sexual, mas apenas duas moveram uma ação contra ele. "Os casos foram arquivados de modo suspeito, acho que não existe no mundo uma cidade mais corrupta que aquela em que vivemos", disse. "Aqui recebemos ameaças de indivíduos ligados a Duque e ao promotor Zapa."

Questionado sobre essas alegações, Zapa disse desconhecer quaisquer ameaças. "Minha família é composta de pessoas honestas", disse. "Não tenho vínculos com qualquer organização [criminosa] desse tipo, e nenhum membro de minha família tem."

Apenas em 2022, a comissão de disciplina judicial de Córdoba abriu três procedimentos disciplinares contra o ex-promotor. Nos meses passados desde o assassinato de Moreno, nem um único jornalista publicou qualquer informação vinculando Zapa à família Duque. Jornalistas locais dizem que, desde a morte de Moreno, os veículos de jornalismo adotaram um tom mais brando. Em 2 de novembro, Pico, o também jornalista primo de Moreno, anunciou o fechamento de seu veículo de mídia em função das ameaças que vinha recebendo. Mais tarde ele o reabriu, mas "sem prosseguir com nenhuma investigação".

Um jornalista, contudo, continua a erguer sua voz. Andrés Chica, que era próximo de Moreno, escreveu no WhatsApp e no Facebook que o gabinete do prefeito de Puerto Libertador teria pago para não ser incluído na investigação criminal sobre a morte de Moreno. No dia seguinte Chica acordou com mensagens de Duque questionando sua reportagem. "Pesei cada palavra de minha postagem", Chica escreveu ao ex-prefeito. A resposta de Duque: "Você sabe o que está fazendo. E sabe como são as coisas aqui em Puerto."

Chica não pensou duas vezes. Deixou a região e atualmente está escondido.

Passados mais de seis meses desde a morte de Moreno, ninguém foi detido pelo assassinato. Para evitar a corrupção local, o caso foi encaminhado para investigadores em Medellín.

Duque estaria cogitando se candidatar a prefeito de Puerto Libertador em outubro. Ele não respondeu a perguntas sobre sua potencial candidatura. Gabriel Calle Águas, o filho do clã Calle que Moreno investigou, segue candidato ao governo regional nas mesmas eleições. Desta vez, porém, os dois serão candidatos sem estar sob a mira do olhar aguçado de Rafael Moreno.

Colaboraram Andrea Rincón (Cuestión Pública), Edier Buitrago (Cuestión Pública), Claudia Duque (freelancer), Juan Diego (El País) , Felipe Morales (El Espectador); tradução de Clara Allain

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