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Guerra da Ucrânia China

Neutralidade é missão impossível na viagem de Lula à China

Brasil quer ser a Índia na Guerra Fria 2.0, mas falta peso, e riscos não devem ser exagerados

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Rio de Janeiro

Em diplomacia, imagem vale muito, mas realidades falam mais alto. Desta forma, a caudalosa viagem de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) à China deve ser vista com o proverbial grão de sal em relação ao lado escolhido na Guerra Fria 2.0 entre Pequim e Washington.

Evidentemente, não ajudou o petista se deixar fotografar com um óculos de realidade virtual da Huawei no momento em que a empresa está no centro da violenta disputa tecnológica entre as duas maiores economias do mundo.

O líder chinês Xi recebe o presidente Lula para encontro no Grande Salão do Povo, no coração de Pequim
O dirigente da China, Xi Jinping, recebe o presidente Lula para encontro no Grande Salão do Povo, no coração de Pequim - Ken Ishii/Pool/AFP

Noves fora as acusações de espionagem —hipócritas pois se verdadeiras não são distantes de práticas ocidentais—, é a história da imagem: Lula simbolizou ter tomado partido da China, algo reforçado pelo seu atabalhoado discurso em que emulou Xi Jinping e Vladimir Putin acerca da necessidade mundial de se livrar do dólar, confundindo yuan e o arquirrival iene no processo.

O encontro com o líder chinês e a aceitação por parte dele de que Lula deve ser um ator na busca pela paz na Ucrânia cimenta a percepção, com viés de sociedade minoritária para o Brasil. Os chineses têm uma economia dez vezes maior que a brasileira, logo qualquer discurso sobre igualdade precisa ser balizado na vida real.

A diplomacia emanada dos corredores do Planalto pelo ex-ministro das Relações Exteriores Celso Amorim em nada se difere da tradição do Itamaraty —o célebre discurso do então chanceler Azeredo da Silveira em 1975 já dizia que a política externa "funda-se na apuração realista dos fatos e na avaliação ponderada das consequências", visando "à eficiência material e não à coerência formal".

Atualizando o contexto de então, da Guerra Fria, para a versão 2.0 iniciada em 2017 por uma Washington assustada com a assertividade de Xi, tem-se no Brasil a procura de um lugar na ordem mundial que se desenha do "moedor de carne" de Bakhmut aos futuros portos de submarinos da Austrália.

Idealmente, o Brasil quer ter um papel análogo ao da Índia no jogo, uma vez que o país de Narendra Modi consegue ser aliado prioritário dos EUA no grupo Quad contra a China, com quem tem inclusive questões fronteiriças ameaçando conflito, integrante do Brics com os mesmos chineses e um dos principais "neutros" auferindo vantagens econômicas do petróleo com desconto do amigo Vladimir Putin.

Nova Déli é o centro dessa nova terceira via que tenta se formar, mas sem nenhuma organização ideológica e frequentemente com interesses díspares, enquanto a Guerra Fria 2.0 vai dividindo o mundo entre o Ocidente liderado pelos EUA e o bloco chinês, que inclui a Rússia.

Falta, contudo, ao país de Lula o peso geopolítico desse gigante asiático, que será o país mais populoso do mundo neste ano e tem potencialidades econômicas enormes. Para ficar na realpolitik de 2023, o ambicioso e chauvinista Modi de quebra tem 164 ogivas nucleares e uma máquina militar enorme.

Portanto, o risco evidente é o de ser absorvido pela agenda alheia, como a desproporcional corte aberta de Lula a Putin insinua. Se a decadência americana é óbvia em vários setores, vide a perda de espaço no Oriente Médio, e há sedução no discurso sino-russo de independência, o Ocidente ainda tem forças econômica e militar únicas e esposa valores distantes do pragmatismo autocrático de russo e chineses.

Além disso, é questionável a procura de protagonismo político mundial do petista por meio de temas para os quais não tem instrumentos reais, como no caso da guerra da Rússia contra Kiev. As chances de virar um inocente útil não são desprezíveis. As lições do acordo nuclear do Irã em 2010 parecem inúteis: Lula, como os Bourbon, não aprendeu e não esqueceu.

Para piorar, o Brasil vive um momento ímpar, que poderia ser capitalizado. Após o isolamento internacional vexatório sob Jair Bolsonaro (PL), há um mundo ávido pela volta brasileira ao palco de temas em que verdadeiramente tem o tal lugar de fala, como política climática e segurança alimentar. Não é pouca coisa, antes que surjam acusações de vira-latismo.

Em favor da aposta de Lula há o fato de que surgem aqui e ali incômodos no Ocidente com a dominância americana, como a visita do francês Emmanuel Macron a Xi provou. Se isso ainda não significa fissura significativa na união da Otan acerca da Ucrânia, expõe rachaduras de longo prazo.

De todo modo, não é o caso de exagerar os efeitos deletérios da posição do petista, até porque os EUA sabem exatamente a relação entre passo e perna em questão. Há um desconforto grande em Washington, particularmente porque Joe Biden foi fiador de primeira hora da transição democrática ameaçada pelo golpismo de Bolsonaro.

Mas isso não deve implicar afastamento imediato, ainda que seja gritante a diferença entre as imagens do acanhado encontro entre Lula e Biden em janeiro e a pompa desta sexta (14), para não falar no antiamericanismo simplório do DNA da esquerda brasileira, que se insinua nas falas do petista.

Diplomatas americanos lembram que os chineses são ótimos em anúncios portentosos, mas de entrega duvidosa, e que no fim os negócios falam mais alto. Se perderam em 2009 o papel de maiores parceiros comerciais para Pequim, sob Lula-2 aliás, os EUA seguem vitais para o comércio brasileiro.

Há nuances culturais a considerar. Não há hoje o componente ideológico da Guerra Fria e um adversário buscando levar seu modelo ao mundo, já que hoje a China não busca expandir o seu comunismo peculiar, mas existe o fato inescapável de que o Brasil é parte do Ocidente. Na mão inversa, para ficar nos símbolos, o futebol fracassou na China.

Ao fim, no valor de face a neutralidade é uma missão impossível. Lula sai hoje mais sino-russo do que americano na fotografia, mas ainda é cedo para saber se o Brasil logrará sucesso em sua tentativa de imprimir cor local à imagem.

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