Ross Douthat

Colunista do New York Times, é autor de 'To Change the Church: Pope Francis and the Future of Catholicism' e ex-editor na revista The Atlantic

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Mundo está mais inclinado a Rússia e China e menos aos EUA

Tentativa americana de se unir a aliados mais estreitos gera risco real e crescente de alienar resto do globo

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No ano passado, oito meses depois do início da nova desordem mundial criada pela invasão da Ucrânia por Vladimir Putin, o Instituto Bennett de Política Pública da Universidade Cambridge lançou um relatório extenso sobre tendências da opinião pública global antes e depois do início da guerra.

Os dados indicaram algo que não chegou a surpreender: o conflito mudou o sentimento público em democracias desenvolvidas do Leste Asiático e da Europa, além dos Estados Unidos, unindo seus cidadãos contra a Rússia e a China e deslocando a opinião de massa numa direção mais pró-americana.

Xi Jinping e Vladimir Putin brindam durante visita do líder chinês ao Kremlin, em Moscou
Xi Jinping e Vladimir Putin brindam durante visita do líder chinês ao Kremlin, em Moscou - Pavel Byrkin - 21.mar.23/Sputnik via Reuters

Fora desse bloco democrático, porém, as tendências foram muito diferentes. Por uma década antes da Guerra da Ucrânia, a opinião pública "numa faixa vasta de países que se estende da Eurásia continental ao norte e a oeste da África", nas palavras do relatório, estava ficando mais favorável à Rússia, ao mesmo tempo em que a opinião pública ocidental se tornava mais hostil.

Do mesmo modo, pessoas na Europa, na anglosfera e em democracias da orla do Pacífico como Japão e Coreia do Sul se voltaram contra a China antes mesmo da pandemia de Covid, mas Pequim era vista sob ótica muito mais favorável no Oriente Médio, África subsaariana e Ásia central.

A guerra de Putin na Ucrânia alterou essas tendências apenas nas margens. A Rússia perdeu popularidade em 2022, mas, globalmente falando, depois da invasão a opinião pública do mundo em desenvolvimento continuou um pouco mais favorável à Rússia que aos EUA, e, pela primeira vez, pendeu mais para a China que para a América.

Na medida em que o conflito da Ucrânia assinalou novo enfrentamento geopolítico entre uma "aliança de democracias marítimas" liderada pelos EUA, conforme o relatório, e uma aliança de regimes autoritários ancorada na Eurásia, a aliança autoritária pareceu contar com reservas surpreendentes de apoio público.

Nos meses passados desde então, essa leitura da paisagem geopolítica tem se confirmado. Fora da anglosfera e da Europa, as tentativas de isolar a economia russa têm recebido pouco apoio sustentado, e o mesmo se aplica às tentativas de isolamento diplomático.

Forças militares russas estão ativas na África. Moscou está encontrando compradores interessados em sua energia, do sul da Ásia à América Latina. O regime de Putin acaba de convocar uma conferência de paz com Síria, Turquia e Irã, na esperança de estabilizar sua própria posição na Síria e ao mesmo tempo colocar os EUA e seus aliados curdos de escanteio. Documentos da inteligência americana vazados indicam que o líder egípcio Abdel-Fattah el Sisi recentemente autorizou a venda secreta de armas à Rússia, não obstante a posição de seu país de aliado e receptor de ajuda dos Estados Unidos.

Ao todo, segundo sondagem recente da Economist Intelligence Unit, tirando a aliança ocidental, o apoio à Ucrânia vem sofrendo uma hemorragia lenta: o número de países que condenam a invasão russa caiu um pouco nos últimos 12 meses, enquanto o número de países neutros ou que apoiam a Rússia subiu. E o crescente não isolamento da Rússia é acompanhado pela influência diplomática e econômica em alta de sua aliada China, que está exercendo um papel crucial como pacificadora e mediadora do poder no Oriente Médio –mais uma vez tendo como parceiros países oficialmente aliados dos EUA, como a Arábia Saudita.

Não está claro se Biden tem uma estratégia calibrada para essa realidade. A Casa Branca tem resistido a alguns chamados pela escalada da troca de ameaças com Moscou, mas tende a aceitar o retrato de uma paisagem geopolítica cada vez mais dividida entre democracia e autocracia, liberalismo e autoritarismo.

(Pense, por exemplo, na Cúpula para a Democracia convocada recentemente por Biden, que excluiu intencionalmente dois aliados da Otan, Hungria e Turquia, porque são vistos como exemplos preocupantes de retrocesso democrático.) Como observou Walter Russell Mead no Wall Street Journal, essa caracterização claramente descreve a realidade internacional em algum grau. Também se enquadra com a mensagem política doméstica de Biden, que traça paralelos entre uma "luta internacional pela democracia liberal" e uma "luta interna contra o Partido Republicano populista".

Mas, como Mead argumentou em seguida, essa visão de uma cruzada pela democracia corre o risco de ser estrategicamente contraproducente. No âmbito internacional, simplesmente não é possível construir as alianças necessárias para conter China e Rússia se não se pode trabalhar com países que não aderem ao liberalismo anglo-americano ou ao institucionalismo eurocrata.

Se não quisermos que o mundo pertença ao autoritarismo de Moscou ou ao tecnototalitarismo de Pequim, precisaremos de uma maneira de lidar construtivamente não apenas com monarquias e governantes militares, mas também com modelos políticos descritos como populismo, democracias iliberais ou autoritarismos soft, com líderes ao estilo de Narendra Modi (Índia) e Recep Tayyip Erdogan (Turquia).

Igualmente, em casa, você não pode mobilizar apoio bipartidário para uma grande estratégia pró-democracia se fica constantemente vinculando essa estratégia a seu conflito com adversários políticos domésticos. Nem tampouco se você constantemente a vincula a valores ligados apenas à sua própria coalizão. Uma grande estratégia que equaciona democracia com liberalismo social ou progressismo nunca vai conseguir apoio sustentado de republicanos e sempre será refém do próximo ciclo eleitoral.

Esse último ponto é imprescindível para compreender também o desafio global enfrentado pelos EUA. Alguns liberais intransigentes podem querer acreditar que o desafio do iliberalismo é principalmente um desafio de regimes impostos a populações relutantes –que as elites do Oriente Médio, africanas e centro-asiáticas são favoráveis a Rússia e China porque querem emular seu modo de governo intransigente, mas que, se deixassem de ser reprimidos, os habitantes desses países fariam parte do campo liberal.

O relatório do Instituto Bennett colocou essa premissa em dúvida. Ele não mostra apenas que a opinião de massas não ocidentais é favorável a China e Rússia. Também oferece evidências de que uma divergência de valores fundamentais, não apenas uma diferença de liderança política ou percepção de interesses, alimenta a divisão entre as democracias desenvolvidas e o mundo em desenvolvimento.

A tabela mais surpreendente aparece no meio do relatório: ela traz um índice de valores socialmente liberais em todo o mundo nos últimos 30 anos. O que vemos são as democracias de alta renda ficando progressivamente mais liberais desde a queda do Muro de Berlim. Mas praticamente não há mudanças nos valores do resto do mundo –nenhum sinal de que o liberalismo social esteja deitando raízes fora dos países onde ele já era forte em 1990.

Isso cria um desafio para qualquer pessoa determinada a organizar a política externa dos EUA em torno dos valores progressistas atuais. Talvez seja possível unir nossos aliados mais estreitos, o núcleo rico e cada vez mais velho de nossa esfera de influência, em torno desse tipo de visão ideológica. Mas corremos um risco real e crescente de alienar o resto do mundo.

Tradução de Clara Allain

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