Restaurantes argentinos vivem lotados, mesmo com inflação que passa de 100%

Desvalorização da moeda local alimenta crescimento da indústria na capital Buenos Aires em meio a grave crise

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Natalie Alcoba
Buenos Aires | The New York Times

Taças de vinho tilintavam num recinto gastronômico em estilo art nouveau que brilhava em seu esplender restaurado. Era noite de degustação no restaurante, um antigo café reformado de mais de um século de idade em Buenos Aires.

Da cozinha saíam tartar de beterraba, lula grelhada e um filé de costela perfeito, seguidos por uma musse de chocolate aveludada.

"Estamos apostando tudo na oportunidade do cenário gastronômico na Argentina", diz Pedro Díaz Flores num tour do restaurante, o Águila Pabellon, do qual é co-proprietário. É o 17º estabelecimento gastronômico que ele inaugura em Buenos Aires nos últimos 18 meses.

Pessoas jantam no Miramar, restaurante popular icônico nos arredores de San Cristóbal, em Buenos Aires
Pessoas jantam no Miramar, restaurante popular icônico nos arredores de San Cristóbal, em Buenos Aires - Sarah Pabst - 8.jun.23/The New York Times

Em Buenos Aires, a cosmopolita capital argentina, um cenário culinário de categoria mundial está crescendo e prosperando. Isso não seria necessariamente notícia, não fosse pelo fato de a Argentina encontrar-se no meio de uma enorme crise financeira.

A inflação está em mais de 114% —a quarta mais alta do mundo—, e o valor do peso argentino despencou, caindo 25% apenas em um período de três semanas em abril. Mas é a desvalorização do peso que alimenta o crescimento da indústria dos restaurantes.

Os argentinos querem livrar-se da moeda nacional o mais rapidamente possível. Por conta disso, membros das classes média e alta têm saído com mais frequência para comer fora. Empresários e chefs estão reinvestindo sua receita em novos restaurantes.

"Crises são oportunidades", diz Jorge Ferrari, que recentemente reabriu um restaurante alemão histórico que havia fechado as portas durante a pandemia de coronavírus. "Há gente que compra criptomoedas. Há pessoas que procuram outros tipos de mercados de capital. Isto é o que eu sei fazer."

O boom é de certo modo uma fachada. Todo mundo parece estar saindo e se divertindo. Mas em boa parte do país os argentinos estão sobrevivendo a duras penas, e a fome está aumentando.

Nos círculos de poder aquisitivo maior, a corrida para sair e se divertir é um sintoma de uma classe média encolhida que, não podendo mais arcar com compras maiores ou viagens, opta por viver o aqui e agora, porque as pessoas já não sabem o que o amanhã trará nem se seu dinheiro vai valer algo. "O consumo que você vê é consumo para satisfação –a felicidade do momento", dz Ferrari.

A prefeitura de Buenos Aires, interessada em promover o cenário gastronômico da cidade, vem rastreando o volume de pratos vendidos em uma amostragem de restaurantes a cada mês, desde 2015.

Os números mais recentes, relativos a abril, indicam que o movimento nos restaurantes está em um dos níveis mais altos vistos desde que o rastreamento começou: 20% acima do ponto mais alto de 2019, antes do começo da pandemia.

Não são apenas estabelecimentos famosos que estão prosperando. Áreas residenciais pouco destacadas de Buenos Aires de repente viraram destinos de influenciadores gastronômicos, e isso rapidamente as leva a receber novas multidões de portenhos.

Há bares que contam com shows de drag que acontecem enquanto você come, padarias veganas, pátios verdejantes e fusões de culinárias globais criadas por chefs que fizeram seus aprendizados em cozinhas de todo o mundo. Um dos lugares mais procurados do momento, o Anchoita, que serve uma versão moderna da gastronomia argentina tradicional, só tem reservas disponíveis para o ano que vem.

Enquanto o peso desvalorizado também vem atraindo turistas de volta a Buenos Aires com o recuo da Covid, são os próprios portenhos os que estão mais presentes nos restaurantes.

O boom é um fenômeno que abrange diversas classes sociais, segundo o economista Santiago Manoukian, da consultoria Ecolatina. Mas é movido sobretudo por pessoas de renda média ou alta, muitos dos quais viram seus rendimentos acompanhar a inflação mas estão tendo que adaptar-se à crise mesmo assim.

Gastos como férias ou um carro passaram a estar fora do alcance de muitas pessoas, especialmente as da classe média –por isso, elas estão curtindo a vida de outras maneiras.

Mas mesmo profissionais freelancers de renda mais baixa, cujos rendimentos encolheram 35% desde 2017, segundo dados colhidos pela Ecolatina, vêm jantando fora antes que seu dinheiro se desvalorize.

"Isso é fruto das distorções que afetam a economia argentina", explica. "Você tem alguns pesos a mais que vão se esvair em fumaça por conta da inflação. Precisa fazer alguma coisa, porque sabe que o pior seria não fazer nada."

Em um pomar em Buenos Aires ao lado de uma quadra de tênis, Lupe García, dona de quatro restaurantes na cidade e um em seus arredores, abaixou-se para arrancar de um ramo algo que se parecia com uma melancia em miniatura, mas era na realidade um cucamelon, fruto do tamanho de uma amora.

Ela estava cercada por alfaces, salsinha, hortelã, alfalfa e folhas roxas de shissô, usadas para fazer tempurá em um de seus restaurantes. Pertencente a Garcia e administrada por agrônomos da Universidade de Buenos Aires, a horta reflete as mudanças no gosto dos habitantes locais, que os restaurantes de García ajudam a promover.

Ela abriu seu estabelecimento mais recente em fevereiro no bairro de Palermo. Trata-se da pizzaria Orno, de estilo napolitano e de Detroit. Mesmo assim, apesar de a crise da inflação ter atraído mais fregueses aos restaurantes, também vem aumentando a complexidade de suas operações.

Para poupar despesas, Garcia trocou os cardápios impressos em todos seus restaurantes por códigos de QR para websites que sua equipe pode modificar rapidamente. "O seu fornecedor lhe leva carne bovina e diz que o preço subiu 20%, e você é obrigada a subir todos os preços."

Numa área movimentada cheia de barracas novas de comida numa viela perto do bairro chinês de Buenos Aires, Victoria Palleros esperava por um prato de macarrão tipo lamen no Orei. "Acho que a geração antes da nossa pensa mais em poupar, mas a gente, não", disse Palleros, 29, funcionária pública.

Muitos argentinos compram dólares americanos em cédula para economizar, mas "comprar US$ 100 dá quase a metade do salário mensal de um jovem", diz ela. "Francamente, acho preferível sair e viver bem durante a semana, e não passar todos os meses no aperto."

Tradução de Clara Allain

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