Descrição de chapéu The New York Times

Como polícia usou crosta de pizza para localizar suposto serial killer nos EUA

Caso envolvendo série de assassinatos de prostitutas em Nova York demorou mais de 10 anos para ser solucionado

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William K. Rashbaum Joseph Goldstein Johnny Milano
The New York Times

Os investigadores começaram a procurar o suposto serial killer traçando uma área que costumam chamar de "polígono". A forma irregular desenhada sobre um mapa de ruas arborizadas no subúrbio de Massapequa Park, em Long Island, Nova York, foi definida com base em informações de registros telefônicos enviadas aum sofisticado sistema de mapeamento de áreas alcançadas por torres de telefonia móvel.

Em 2021, o grupo conseguiu encolher esse polígono para que cobrisse apenas algumas centenas de casas. Os investigadores acreditavam que em uma delas morava o serial killer.

Dez anos antes, 11 corpos haviam sido encontrados em uma vegetação rasteira próxima à Gilgo Beach, uma praia remota na costa Sul. Quatro mulheres foram amarradas com fita adesiva ou cintos ou enroladas em mortalhas de juta com estampa de camuflagem, do tipo que os caçadores usam como esconderijo. Elas trabalhavam como garotas de programa e desapareceram após se encontrarem com um cliente.

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Os investigadores vasculham a casa de Rex Heuermann em Massapequa Park, no estado de Nova York - Johnny Milano -15.jul.23/The New York Times

Pouco antes de desaparecer, cada uma delas teve contato com um número pertencente a um celular descartável diferente. Os investigadores determinaram que alguns dos telefones tinham passado a manhã e a tarde numa pequena área do centro de Manhattan, perto da estação ferroviária Penn Station. À noite, eles emitiram sinais no polígono —refletindo o vaivém dos 150 mil moradores de Long Island que vão a Manhattan todos os dias.

Na sexta-feira passada (14), autoridades do condado de Suffolk anunciaram a prisão do homem suspeito de matar matado as quatro mulheres: Rex Heuermann, 59, um arquiteto que tinha um escritório perto da Penn Station e morava exatamente na rua tranquila em que a polícia esperava encontrá-lo. Ele foi acusado de três dos assassinatos, pelos quais alegou inocência, e apontado como o principal suspeito do quarto.

A prisão encerrou anos de angústia para algumas das famílias das vítimas. Mas a investigação também levantou uma questão perturbadora: será que as autoridades poderiam ter resolvido o caso anos antes? O relato a seguir foi extraído de um pedido de fiança de 32 páginas e entrevistas com investigadores atuais e antigos, além das principais autoridades judiciais do condado de Suffolk.

O caso avançou com idas e vindas ao longo de mais de uma década. Um novo comissário de polícia, Rodney K. Harrison, e sua força-tarefa levaram apenas seis semanas, porém, para descobrir uma pista crucial no extenso processo do caso.

Trabalhando sob a direção de Harrison, um grupo de cerca de dez investigadores que incluía membros de seu departamento, do gabinete do delegado, do FBI e da Polícia Estadual foi formado. Eles trabalharam em estreita colaboração com o promotor distrital do condado de Suffolk, Ray Tierney, e sua equipe.

O grupo trabalhava em um escritório cujas paredes bege foram cobertas de mapas, fotos e uma enorme linha do tempo, vasculhando a vida digital cotidiana de seus suspeitos –endereços de email, contas de rede social, histórico de pesquisas na internet. Por esse tempo todo, Heuermann fez ao Google a mesma pergunta que tantos de seus vizinhos se faziam há mais de uma década: "Por que o assassino em série de Long Island não foi pego?".

Descobertas sombrias

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Trecho de pântano ao longo da Ocean Parkway, na costa sul de Long Island, 13 anos depois que as vítimas de Gilgo Beach foram encontradas - Johnny Milano - 18.jul.23/The New York Times

Encontrar o rastro de um assassino em série é um desafio. O assassino muitas vezes não tem qualquer ligação pessoal com as vítimas. Se elas ainda por cima viviam à margem da sociedade, é possível que se passem meses ou anos até que os desaparecimentos sejam tratados como seriedade —ou mesmo reconhecidos como obras de um único assassino.

A ideia de que um serial killer havia agido na costa Sul de Long Island surgiu em dezembro de 2010, quando um policial do condado de Suffolk, John Mallia, e seu parceiro canino, um pastor-alemão chamado Blue, procuravam Shannan Gilbert, 24, que havia desaparecido ali.

Em vez da jovem, eles encontraram outros quatro corpos perto da praia de Gilgo ao longo de vários dias. Estes haviam sido depositados a cerca de dez metros da Ocean Parkway, a principal via leste-oeste que atravessa uma faixa arenosa na costa Sul. Depois de descobrirem os corpos, os investigadores procuraram evidências do crime nas proximidades com cuidado meticuloso —"peneirando a areia como garimpeiros ao redor de cada corpo", nas palavras de um investigador.

O cadáver de Gilbert e outros restos mortais, incluindo aqueles de um homem vestindo roupas femininas e de uma criança, seriam encontrados ao longo da mesma estrada no ano seguinte. As descobertas chocaram a região, mas a polícia especulava que os assassinatos provavelmente eram obra de mais de uma pessoa.

Os primeiros quatro corpos encontrados —todos pertencentes a mulheres pequenas, que tinham por volta de 20 anos e haviam desaparecido nos últimos quatro anos— pareciam, contudo, ter uma ligação entre si. A maneira como os cadáveres tinham sido embrulhados era parecida, e eles haviam sido deixados em regiões próximas, fazendo os investigadores presumirem que elas foram mortas pelo mesmo homem. Além disso, havia motivos para acreditar que uma testemunha tinha presenciado o assassino.

A última das quatro mulheres a desaparecer foi Amber Costello, 27, que publicava anúncios de programas em classificados online como Backpage e Craigslist e que tinha a palavra "Kaos" tatuada no pescoço. Pouco antes de ela ser vista pela última vez, em setembro de 2010, um possível cliente a contatou de um celular descartável e a visitou em uma casa em West Babylon que ela dividia com três colegas, estacionando na entrada, de acordo com documentos judiciais arquivados após a prisão de Heuermann. O modelo que ele dirigia era inusitado: o veículo era um SUV na frente e uma picape atrás.

O motorista era igualmente estranho: corpulento, na casa dos 40 anos, com cabelos escuros e espessos e óculos no estilo dos anos 1970. Uma testemunha o descreveu como "um ogro".

Assim que o futuro cliente pagou Costello, entretanto, uma cena caótica se desenrolou. Um homem "fingindo ser o namorado indignado" entrou correndo na casa —parte de um estratagema para roubar o dinheiro do cliente, segundo os documentos do caso.

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Investigadores na casa de Rex Heuermann, acusado dos assassinatos em série de Gilgo Beach - Johnny Milano - 14.jul.23/The New York Times

Assustado, o cliente saiu correndo da casa. Mas não desapareceu por muito tempo. Mandou uma mensagem para Costello pedindo "crédito para a próxima vez" e marcou outro encontro. Ela foi avistada com vida pela última vez na noite seguinte ao sair de casa, supostamente para encontrar o homem.

Não muito tempo depois, uma testemunha relatou ter visto uma caminhonete escura passando. A descrição do veículo na entrada da casa —um Chevrolet Avalanche preto de primeira geração— acabou escondida nos registros do caso, segundo as autoridades.

Peneirando os sinais

Esse fato aparentemente ficou enterrado durante anos entre centenas de milhares de páginas de entrevistas, registros telefônicos, de viagem e de crédito e pistas intermináveis, ao mesmo tempo em que o departamento de polícia do condado de Suffolk e o escritório do promotor distrital enfrentavam anos turbulentos.

James Burke, o chefe de polícia que comandava o departamento desde 2012, foi preso em 2015 e depois condenado por infringir direitos civis e obstruir a justiça por um tribunal federal. Ele tinha espancado um suspeito preso depois de roubar charutos e uma bolsa com pornografia e brinquedos sexuais de seu carro. O encobrimento desse episódio envolveu o promotor do distrito da época, Thomas J. Spota, que também acabou preso por seu envolvimento no caso.

A investigação federal sobre os principais homens da lei do condado de Suffolk levou anos, período em que Burke e Spota recusaram a ajuda do FBI.

Após a prisão de Burke, o novo chefe da polícia do condado de Suffolk, Tim Sini, redobrou os esforços do departamento. Um ex-promotor federal em Manhattan, Sin se concentrou em rastrear os celulares descartáveis, esperando encontrar mais pistas.

Agentes do FBI já tinham identificado em 2012 a área onde as coberturas de quatro torres de celular se sobrepunham, no parque Massapequa. Em meados de 2016, Sini conseguiu uma ordem judicial para obter informações de todos os telefones que se conectassem a torres específicas por determinado período de tempo.

A tecnologia e o software tinham avançado. Então Sini investiu num sistema que permitia aos investigadores "focar as áreas relevantes", segundo disse ao Newsday, e "encolhê-las a espaços administráveis".

Eles reduziram a área àquilo que chamaram de polígono, que abrigava algumas centenas de casas ao redor da Primeira Avenida, no parque Massapequa, afirmaram os policiais.

De repente, um suspeito

A grande descoberta do caso data de março de 2022. Apenas algumas semanas depois da formação da força-tarefa, um investigador encontrou a descrição da testemunha do Chevrolet Avalanche no arquivo do caso. Usando um banco de dados que pesquisa veículos por marca e modelo, sem exigir o número de suas placas, ele encontrou uma Avalanche ligada a Heuermann em 2010, justamente o ano em que Costello desapareceu.

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Membro do Departamento de Polícia do Condado de Suffolk faz buscas perto de Gilgo Beach, depois que quatro corpos foram encontrados - Robert Stolarik - 14.dez.2010/The New York Times

As autoridades afirmam que aquela foi a primeira vez em que ele foi aventado como um possível suspeito. Sua descrição física combinava com a do "ogro" que saiu correndo da casa pouco antes de a moça desaparecer: ele tinha 1,80 metro e era corpulento. Seu escritório ficava num trecho de Manhattan identificado pelo sofisticado mapeamento do celular. Por fim, ele morava no que os investigadores acreditavam ser o ponto em que o assassino em série provavelmente morava: a parte do parque Massapequa onde eles começaram a desenhar o polígono.

A pista da Avalanche, diz o promotor distrital Tierney, era "conhecida desde o início". Ele, que assumiu o cargo em 2022, afirmou não saber por que os investigadores não a examinaram, acrescentando que talvez o detalhe não tenha sido considerado confiável ou tivesse perdido a importância entre pistas que pareciam mais promissoras.

"Há montes de evidências", diz ele. "O que é crível, o que não é, o que parece provável, o que não —então, não é tão simples quanto parece."

Na investigação de Gilgo Beach, a pista crítica havia escapado. "Se eles sabiam disso, foi um grande erro não rastrear esse carro antes", diz Rob Trotta, ex-detetive e atual vereador do condado de Suffolk, que expressou o desejo de fazer um inquérito oficial sobre o que aconteceu.

Dominick Varrone, ex-chefe de detetives que supervisionou o primeiro ano da investigação, questiona se a pista da Avalanche realmente estava no arquivo do caso. Acrescentou, porém, que se sentiria "muito mal" se sua equipe tivesse perdido alguma coisa. "Não havia nenhum veículo suspeito em nosso radar quando eu ainda estava lá."

Quando os investigadores finalmente ligaram o Chevrolet Avalanche a Heuermann, a investigação entrou em seu clímax. Os investigadores começaram a explorar todos os aspectos de sua vida, para isso fazendo uso 300 intimações e mandados de busca.

Tanto tempo se passou desde os assassinatos que os dados de localização precisos do celular pessoal de Heuermann —registrado em seu escritório de arquitetura— não existiam mais. Mas suas faturas mostravam a localização geral do telefone quando as ligações foram feitas, situando-o na cidade de Nova York na mesma época em que ligações foram feitas ao celular de uma das vítimas, Melissa Barthelemy, em 2010.

Os investigadores descobriram que vários dos assassinatos ocorreram quando a mulher e os filhos de Heuermann estavam fora da cidade. Um deles coincidiu com uma viagem que sua mulher fez à Islândia; outro ocorreu quando ela estava em Maryland, e um terceiro quando ela estava em Nova Jersey.

Mas eles não tinham nenhuma forma de ligar os telefones descartáveis usados para contatar as vítimas a Heuermann. Tampouco tinham qualquer outra evidência física ou forense ligando-o diretamente aos crimes. Isso logo mudaria.

Ponto crítico

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Vizinhos se reúnem ao lado da imprensa para filmar policiais na casa de Rex Heuermann - Johnny Milano - 14.jul.23/The New York Times

Nos primeiros dias da investigação, pelo menos cinco fios de cabelo foram descobertos nas vítimas ou presos aos sacos de juta ou à fita adesiva que os envolvia. Eles foram considerados inadequados para análises detalhadas de DNA.

Mas a ciência forense avançou: nos últimos três anos, dois laboratórios externos conseguiram gerar relatórios completos de DNA sobre os fios, de acordo com documentos judiciais.

Depois disso, os investigadores precisavam de material genético de Heuermann. Em julho passado, um detetive disfarçado começou a vasculhar seu lixo para reciclagem em busca de garrafas vazias. Em janeiro, Heuermann jogou uma caixa de pizza numa lata de lixo em frente a seu seu escritório, no centro de Manhattan. Uma equipe de vigilância a encontrou, e as crostas de pizza que ele tinha deixado para trás deram aos investigadores o que eles que precisavam.

Eles concluíram que a maioria dos cabelos encontrados nas vítimas provavelmente veio da mulher de Heuermann. Um deles poderia ser do próprio suspeito.

Um laboratório comparou o perfil de DNA do quinto fio de cabelo com o material genético encontrado na pizza de Heuermann. Havia marcadores em comum suficientes para concluir que, embora 99,96% da população pudesse ser considerada incompatível, ele não poderia.

Tierney soube desses resultados em junho. Ele conta ter lido o relatório repetidas vezes, como se tentasse convencer seu cérebro do que seus olhos estavam vendo.

Os investigadores acreditavam que agora tinham alguma evidência direta ligando Heuermann aos assassinatos. Além disso, os investigadores tinham ainda outra informação: o suspeito estava vasculhando a internet em busca de informações sobre o que eles estavam fazendo.

As pesquisas ligadas às suas contas anônimas incluíam mais de 200 consultas nos últimos 16 meses sobre assassinos em série em geral e, especificamente, sobre as vítimas de Gilgo Beach. "Por que a polícia não conseguiu rastrear as ligações feitas pelo assassino de Long Island?" era só uma de muitas.

Tierney estava ficando cada vez mais preocupado com a possibilidade de mais vítimas entrarem na sua mira. Ele disse que Heuermann estava visitando locais de prostituição –e entrando em contato com mulheres que trabalhavam no ramo.

O promotor afirmou que estava dormindo mal, atormentado pela tensão e preocupação. Na semana passada, decidiu que o caso havia chegado a um ponto crítico.

Então, na noite de 13 de julho, detetives de terno e gravata abordaram Heuermann quando ele saiu de seu prédio comercial.

Heuermann havia coberto metodicamente seus rastros e monitorado de perto a investigação. Mas quando os detetives o prenderam após mais de uma dúzia de anos de perseguição, sua reação foi simples e instintiva: uma grande surpresa.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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