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Em trunfo diplomático, Biden fortalece vínculo com aliados-chave na Ásia

Estados Unidos, Japão e Coreia do Sul firmam acordo de cooperação militar e econômica trilateral; China é rival oculto

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Washington

Em uma vitória diplomática para o presidente Joe Biden, Estados Unidos, Japão e Coreia do Sul anunciaram nesta sexta-feira (18) uma cooperação militar e econômica inédita na história dos três países. O objetivo da cúpula, apesar de negado pelos parceiros, é fazer frente à Coreia do Norte e à China.

Para não deixar dúvidas quanto ao significado da aliança, Biden escolheu Camp David para receber o presidente sul-coreano, Yoon Suk-yeol, e o primeiro-ministro japonês, Fumio Kishida.

Ao centro, o presidente dos EUA, Joe Biden, durante entrevista a jornalistas em Camp David nesta sexta, com o presidente sul-coreano, Yoon Suk-yeol, à esquerda, e o primeiro-ministro japonês, Fumio Kishida, à direita - Samuel Corum/The New York Times

O local é palco dos principais encontros diplomáticos do país –foi ali que Egito e Israel selaram acordo de paz em 1978 sob a mediação de Jimmy Carter. No entanto, os EUA não recebiam ninguém ali desde 2015.

"Se parece que estou feliz, é porque estou", disse Biden em discurso após o encontro. Em suas palavras, unir Tóquio e Seul, que têm um longo histórico de animosidades, foi um "compromisso pessoal".

No comunicado "Espírito de Camp David", divulgado pela Casa Branca, os líderes dizem inaugurar "uma nova era de cooperação trilateral" num momento "crucial da história, quando a competição geopolítica, a crise climática, a guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia e as provocações nucleares nos testam".

Até esta quinta, ainda havia dúvidas se a China seria citada no comunicado, de acordo com a porta-voz da diplomacia japonesa, Hirariko Ono. Segundo a imprensa americana, havia uma resistência dos países asiáticos a uma linguagem mais agressiva contra seu vizinho e maior parceiro comercial.

Pequim acabou entrando no texto –citada uma vez, no sexto parágrafo de um total de 14. "Recordando a posição publicamente anunciada de cada um de nossos países em relação ao comportamento perigoso e agressivo que apoia reivindicações marítimas ilegais que recentemente testemunhamos por parte da República Popular da China (RPC) no mar do Sul da China, nós nos opomos veementemente a quaisquer tentativas unilaterais de alterar o status quo nas águas do Indo-Pacífico", diz o trecho.

Entre os compromissos firmados está o de os três parceiros se consultarem diante de ameaças a qualquer um deles –entendendo que o risco à segurança de um significa um risco a todos. Para isso, será criada uma linha direta entre os líderes das três nações. No entanto, membros do governo americano foram enfáticos ao ressaltar que isso não significa uma obrigação de reação conjunta, o que coloca o acordo um degrau abaixo da Otan, que exige ação imediata em face de um ataque a um dos membros.

"A opinião pública sul-coreana e o legado histórico com o Japão impedem Yoon de aderir a uma aliança trilateral completa. Por isso, todas as partes devem conviver com um conjunto de compromissos relativamente abrangentes em comparação com o que existia antes, mas que não chega a ser uma versão asiática da Otan", avalia Scott Snyder, diretor do programa de política EUA-Coreia do think tank Council on Foreign Relations (CFR), sediado em Washington.

Ainda na área de segurança, os países farão exercícios militares anuais conjuntos —o que, em geral, pisa nos calos de Pequim— e compartilharão informações de inteligência sobre o programa nuclear da Coreia do Norte, o que engloba também o uso de criptomoedas pelo país para lavar dinheiro, disse Biden.

"Embora as ameaças possam não ser novas, a tensão no Leste Asiático aumentou significativamente nos últimos meses. Tanto China quanto Coreia do Norte estabeleceram uma cooperação mais estreita com a Rússia, o que acrescenta uma nova dimensão às preocupações", afirma a pesquisadora Yuko Nakano, especialista em Japão do Centro para Estudos Estratégicos e Internacionais, sediado em Washington.

Para Nakano, um dos principais objetivos da cúpula é apresentar uma frente unida. "Isso enviará uma mensagem clara a Pyongyang e a Pequim de que uma tática de ‘dividir para conquistar’ não será eficaz."

No plano econômico, uma das principais iniciativas é a criação de um sistema de monitoramento das cadeias de produção, capaz de alertar os países aliados em caso de problemas, como escassez de minérios e baterias. A solução responde a um trauma da pandemia, que gerou caos na logística global e é uma das causas da disparada da inflação em diversos países –inclusive nos EUA, em que o tema é um dos principais pontos fracos de Biden na eleição do ano que vem.

Também é prevista cooperação em infraestrutura, cibersegurança, inteligência artificial e saúde. Em um segundo documento, intitulado "Princípios de Camp David", eles também afirmam que se comprometem a promover a participação de mulheres na sociedade e os direitos humanos.

Como a própria declaração do encontro reconhece, a aliança foi possível graças a uma convergência de interesses muito específica: um interesse comum dos líderes asiáticos em aproximar os países, mesmo contra a opinião pública local. Da parte dos EUA há também um impulso personalista de Biden, que priorizou a região em sua estratégia internacional. Um membro do alto escalão do governo americano, em anonimato, disse que até a idade avançada do presidente —motivo frequente de críticas ao democrata— foi um trunfo nesses esforços, já que sua senioridade seria vista com bons olhos na Ásia.

O temor de que uma mudança de governo –inclusive nos EUA– coloque tudo a perder fez da institucionalização da cooperação uma das metas dos parceiros. O acordo estabelece que as lideranças dos países deverão se encontrar novamente todo ano, assim como níveis mais baixos na hierarquia, como ministros e secretários. Ainda assim, há dúvidas quanto à continuidade da aliança caso a oposição vença as próximas eleições em qualquer um dos três países.

As desavenças entre seus maiores parceiros na Ásia sempre foram um problema para os americanos. "Isso interrompeu programas de intercâmbio de defesa, reuniões entre oficiais, visitas de navios navais e exercícios militares conjuntos", afirma Daniel Russel, que atuou na equipe de relações exteriores de Barack Obama, em artigo no jornal The New York Times.

Ainda segundo ele, os países relutavam a compartilhar dados sobre lançamentos de mísseis norte-coreanos, o que exigiu que os EUA empregassem "soluções alternativas complicadas".

"Combinados, nós temos 150 anos de aliança com Japão e Coreia do Sul. O que é novo agora é que estamos costurando todo esse trabalho para tentar fortalecer a estabilidade e a segurança regional", disse Jake Sullvian, conselheiro de Segurança Nacional de Biden.

Em seu discurso, Yoon disse esperar que a próxima reunião ocorra na Coreia do Sul.

Japão e Coreia do Sul têm histórico de conflitos


1910-1945: Ocupação da Coreia pelo Japão

1937-1945: Japão entra em guerra com a China, após ter ocupado parte do país em 1933

Anos 1990: Começam esforços para uma cooperação trilateral. Em um encontro histórico em Tóquio, o Japão reconhece a ocupação e pede desculpas à Coreia do Sul

Anos 2000: Após a Coreia do Norte admitir que tem um programa nuclear, os três países, junto com China e Rússia, discutem como conter o país

2013: O primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe, visita um santuário que homenageia, entre outros, criminosos de guerra. Coreia do Sul e China reagem

2013: Obama consegue promover encontro entre Coreia do Sul e Japão em resposta a testes nucleares da Coreia do Norte e incentiva que ambos falem sobre as chamadas "mulheres de conforto", como são chamadas as vítimas forçadas à prostituição e escravidão sexual pelo Japão

2015: Coreia do Sul e Japão declaram em acordo conjunto que pretendem resolver a questão das "mulheres de conforto"

2017: Novo presidente sul-coreano critica acordo e recua do plano para compensar as vítimas e suas famílias

2018: A Suprema Corte sul-coreana determina que empresas japonesas compensem trabalhadores não pagos durante a Segunda Guerra Mundial

2021: Novas ameaças da Coreia do Norte levam os EUA a voltarem a pressionar por encontros trilaterais, mas esforço enfrenta resistência dos países asiáticos, a ponto de ambos furarem uma entrevista coletiva, deixando a representante americana sozinha no palco

2023: Biden recebe os líderes do Japão e da Coreia do Sul em um encontro histórico em Camp David, onde foi anunciada uma cooperação formal entre os três países

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