Descrição de chapéu The New York Times África

Como a escassez de fertilizantes tem levado à fome na África

Interrupção de cadeia de suprimentos causada por Covid e Guerra da Ucrânia elevou preços dos alimentos

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The New York Times

Suleiman Chubado não tem certeza do que causou o aumento do preço dos fertilizantes mais de duas vezes no último ano, mas ele está amargamente consciente de suas consequências. Em sua fazenda no nordeste da Nigéria, ele não pode mais pagar pelos fertilizantes necessários. Por isso, seu milho está raquítico e pálido, suas folhas esfarrapadas se curvando em direção à terra.

Dentro de sua casa de barro, ele se acostumou a explicar a seus dois filhos pequenos e à esposa grávida por que eles devem se contentar com duas refeições por dia —às vezes só uma— mesmo quando a fome os consome.

Trabalhador em Gombe, na Nigéria, embebe e aquece o arroz para separar os grãos das cascas. No fundo, outro trabalhador faz o mesmo
Trabalhadores em Gombe, na Nigéria, embebem e aquecem o arroz para separar os grãos da casca - Finbarr O'Reilly-15.out.23/The New York Times

Enquanto ele e seus vizinhos lamentam a calamidade que se desenrola em grande parte da África, eles trocam teorias sobre a suposta fonte dos problemas: a guerra da Rússia contra a Ucrânia, que interrompeu a exportação de ingredientes essenciais para a manufatura de fertilizantes. "Estamos em dois mundos diferentes, separados por aviões e oceanos", diz Chubado. "Como isso pode nos afetar aqui?"

A pergunta se repete em muitos países de baixa renda, nos quais agricultores lidam com choques que tornaram os fertilizantes escassos e inacessíveis, diminuíram as colheitas, aumentaram os preços dos alimentos e espalharam a fome.

A Guerra da Ucrânia reduziu as exportações de grãos da região e fez com que o preço de produtos básicos como o trigo disparasse do Egito à Indonésia. O fornecimento mundial de alimentos também é ameaçado pelos estragos das mudanças climáticas —ondas de calor, seca, enchentes.

Agora, a escassez e o consequente encarecimento dos fertilizantes se combinam a essas outras forças para ameaçar os meios de subsistência.

A crise começou com a pandemia de Covid-19, que aumentou o custo de transportar ingredientes de fertilizantes. Depois veio a guerra. Por fim, nos últimos 18 meses, a Reserva Federal dos Estados Unidos aumentou drasticamente as taxas de juros para conter a inflação dentro do país. Isso fez subir o valor do dólar americano em relação a muitas moedas —e, como os componentes dos fertilizantes são precificados em dólares, eles se tornaram muito mais caros também em países como a Nigéria.

Desde fevereiro de 2022, o preço dos fertilizantes mais que dobrou no Estado africano e em outras 13 nações, de acordo com uma pesquisa da ActionAid, organização de ajuda humanitária internacional. O nível de preocupação com a insegurança alimentar é alarmante em grande parte da África Ocidental e Central, de acordo com um relatório recente do Banco Mundial.

Apenas na Nigéria, o país mais populoso da África, quase 90 milhões de pessoas —aproximadamente 40% da população total— não consomem alimentos como deveriam, de acordo com dados do Programa Mundial de Alimentos (PMA), ligado à ONU.

Céu escuro sobre casas e região verde em Gombe, no norte da Nigéria
Uma tempestade de chuva atinge Gombe, no norte da Nigéria - Finbarr O'Reilly-19.set.23/The New York Times

Em conversas com três dúzias de pessoas envolvidas no cultivo de culturas, comércio de alimentos e distribuição de fertilizantes no nordeste da Nigéria, o sentimento de perplexidade convive com a desesperança.

Os agricultores estão trocando alimentos básicos, como arroz e milho, por produtos menos valiosos, como soja e amendoim, que requerem menos fertilizantes. Colheitas estão sendo roubadas. Esposas estão deixando os maridos e voltando para suas famílias para ter mais acesso a comida. Pais estão tirando os filhos da escola porque não têm dinheiro para a mensalidade. A mobilidade social ascendente deu lugar à necessidade de agarrar-se ao que se tem.

O choque da pandemia

Diante dos preços extraordinários dos fertilizantes artificiais, alguns agricultores estão migrando para variedades orgânicas, incluindo esterco animal. Segundo especialistas, a longo prazo isso é melhor para o solo, para a qualidade dos alimentos e para a saúde pública em geral.

Mas pode levar anos para que as colheitas cultivadas com esse tipo de fertilizante alcancem os rendimentos obtidos com o uso das variedades comerciais. Na Nigéria, lar de mais de 220 milhões de pessoas, a prioridade máxima é a busca imediata de mais alimentos. Pelo menos por enquanto, os fertilizantes artificiais continuam sendo um meio crucial de adicionar nutrientes vitais como nitrogênio e potássio aos solos.

O ramo dos fertilizantes artificiais é dominado por produtores nos EUA, China, Índia, Rússia, Canadá e Marrocos. A Nigéria tem fábricas de fertilizantes que produzem variedades nitrogenadas, mas elas exportam quase tudo para a América do Sul. Como resultado, o país está vulnerável a qualquer ruptura da cadeia de suprimentos global.

A pandemia foi um golpe colossal nesse sentido. Ao fabricar e misturar fertilizantes, a Nigéria importa fosfatos extraídos em Marrocos, enviando-os para o porto de Lagos. Nos primeiros dois meses da pandemia, à medida que a atividade comercial congelava, as empresas de transporte reduziram seus portos de escala na África subsaariana em cerca de um quinto, de acordo com a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento.

Depois, à medida que os horários regulares de transporte marítimo foram retomados, Lagos foi sobrecarregada por um acúmulo de carga. Buscando uma passagem mais fácil, os fabricantes de fertilizantes desviaram os embarques para Port Harcourt, localizado a cerca de 600 km pela costa. Mas a pirataria desenfreada na área implicava custos mais altos com seguro e frete.

Em março de 2021, um enorme navio porta-contêiner encalhou no Canal de Suez, fechando essa artéria do comércio e elevando os preços globais de transporte. O custo dos fosfatos do Marrocos entregues à Nigéria aumentou para mais de US$ 1.000 por tonelada (R$ 5.000, na cotação atual).

"Você tinha todos esses problemas agravando o fornecimento", diz Gideon Negedu, secretário-executivo da Associação de Produtores e Fornecedores de Fertilizantes da Nigéria.

Quando a cadeia de suprimentos enfim começava a se recuperar, a Rússia invadiu a Ucrânia.

As consequências do conflito

Para os produtores de fertilizantes, o efeito mais imediato da guerra foi o impacto nos preços do setor energético.

Os fertilizantes nitrogenados são produzidos por meio de um processo químico que consome energia, geralmente gás natural. À medida que os EUA, a Europa e outros governos impuseram sanções à Rússia— um importante produtor de gás natural—, seu preço subiu.

A guerra também limitou o acesso ao hidróxido de potássio, uma importante fonte de potássio. A mineração de potássio é uma indústria importante na Belarus, aliada da Rússia, e mesmo antes da guerra na Ucrânia, a última ditadura europeia enfrentava restrições internacionais para vender o produto. A Rússia é outra grande produtora de hidróxido de potássio.

As sanções americanas e europeias à Rússia e à Belarus incluem exceções cujo propósito é permitir o comércio de commodities agrícolas. Mas grande parte do potássio proveniente da Belarus —um país sem acesso ao mar— passava tradicionalmente pela Lituânia, por trem, e Vilna proibiu esse trânsito no ano passado.

Fabricantes de fertilizantes não poderiam simplesmente abrir mão dos fosfatos e produzir produtos com os outros nutrientes essenciais, nitrogênio e potássio. Muitas colheitas requerem os três.

A associação comercial de Negedu representa 80 usinas de mistura de fertilizantes e 500 grandes distribuidores do produto em toda a Nigéria. Em busca de potássio, a associação voltou-se para a província canadense de Saskatchewan. Mas lá enfrenta uma forte concorrência de consumidores muito maiores de fertilizantes dos EUA e da Índia, além de taxas de transporte mais altas.

Durante grande parte do ano passado, uma tonelada de potássio transportada do Canadá para a Nigéria custava US$ 1.350 (R$ 6.750) —aproximadamente cinco vezes o preço de antes de 2020.

Preços impossíveis

Quando a temporada de cultivo começou em maio, os ingredientes para fertilizantes voltaram a ficar disponíveis em todo o mundo. "O mercado de fertilizantes se estabilizou", afirma Máximo Torero Cullen, economista-chefe da FAO, órgão da ONU para alimentação e agricultura, por telefone de seu escritório em Roma. "Não vejo tantos problemas neste momento."

Mas os agricultores em grande parte da África ainda tinham problemas. O preço de tudo estava subindo. O fertilizante estava disponível, mas muitos agricultores não podiam pagar por ele. O custo de alimentos básicos como milho, arroz e feijão se multiplicava. O mesmo acontecia com o custo da carne, pois o gado é normalmente alimentado com cascas de grãos.

Em Washington, o Fed (Federal Reserve, o banco central americano) vinha aumentando as taxas de juros. Investidores estavam vendendo moedas de países cuja economia é menos segura, como a Nigéria, e comprando ativos mais valorizados, vendidos em dólares.

No último ano, a moeda local da Nigéria perdeu quase metade de seu valor em relação ao dólar. A queda das moedas locais aumenta o custo de todas as importações, incluindo ingredientes para fabricar fertilizantes.

Os preços dos fertilizantes estavam longe de ser a única fonte de angústia para os agricultores. Inundações catastróficas no ano passado destruíram as colheitas no nordeste da Nigéria. Em Abuja, a capital do país, o governo eliminou os subsídios de combustíveis este ano, aumentando os custos de transporte.

A dificuldade de comprar fertilizantes torna mais difícil para as famílias rurais superar esses desafios.

No ano passado, Aisha Hassan Jauro, 40 anos, mãe de cinco filhos na cidade de Yola, pegou emprestados 100 mil nairas (cerca de R$ 630) de um banco local com uma taxa de juros de 20%. Ela usou o dinheiro para comprar fertilizantes, sementes e pesticidas para plantar milho nos cinco acres que tem.

Pessoas caminham entre barracas nas quais se vendem frutas, verduras e fertilizante
O mercado central em Yola, Nigéria, onde falta fertilizante - Finbarr O'Reilly-15.set.23/The New York Times

As inundações destruíram sua colheita, deixando-a sem comida nem dinheiro, mas ainda tendo que pagar mensalmente 17,5 mil nairas (cerca de R$ 110).

Ela e seu marido compram especiarias e grãos em um mercado no centro da cidade e os vendem a preços mais altos em sua vila, ganhando o suficiente para uma única refeição por dia. Eles reservam a comida mais nutritiva que têm para as crianças —massa frita feita de farinha de mandioca—, enquanto os adultos se alimentam de ervas cozidas que eles mesmos cultivam.

Eles tiraram sua filha da universidade, onde ela estudava gestão de desastres. Uma outra filha não pode começar o sétimo ano porque eles não têm os 2.500 nairas (cerca de R$ 15) exigidos para que ela faça uma prova obrigatória. A terra se apresenta como uma fonte potencial de recuperação. Mas este ano, com o fertilizante ainda mais caro, eles não plantaram nada.

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