Quem governaria a Faixa de Gaza depois do Hamas

Especialistas propõem cinco cenários possíveis, cada um com sua problemática, de Israel às Nações Unidas

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Ofensiva de solo preparada por Israel tem como fim declarado aniquilar o grupo radical que administra o enclave palestino desde 2007. E depois? Especialistas propõem cinco cenários —cada um com sua problemática. Israel mobilizou cerca de 350 mil reservistas, uma parte de seu exército se encontra na fronteira com o Líbano, outra na com a Faixa de Gaza. Objetivo da longamente esperada ofensiva de solo nesse território palestino é a aniquilação do grupo radical islâmico Hamas, classificado como organização terrorista pela União Europeia, Alemanha, Estados Unidos e outros países, também do Oriente Médio.

Não haveria alternativa para tal passo, assegura Michael Milshtein, ex-agente do serviço secreto israelense e atualmente pesquisador no Moshe Dayan Center da Universidade de Tel Aviv. Colocando em primeiro plano os interesses de segurança nacional de Israel, sua avaliação do grupo palestino é inequívoca.

Homem em meio a escombros na região da Faixa de Gaza
Homem em meio a escombros na região da Faixa de Gaza - Getty Images

"O Hamas sempre formulou bem claramente suas metas: fomento ao jihad [guerra santa islâmica] e extermínio de Israel. [O grupo] nunca encarou a melhoria econômica como uma conquista estratégica, nem deixou de anunciar uma futura ofensiva contra Israel."

No entanto, como a organização também é quem governa a região desde 2007, uma questão se coloca desde já: quem assumiria no futuro a administração política da Faixa de Gaza, após a destruição do Hamas e suas estruturas terroristas, como pretende Tel Aviv? Os israelenses ainda não deram nenhuma resposta oficial.

Para Mishtein, contudo, uma coisa é certa: não se pode, de forma alguma, deixar uma lacuna na administração de Gaza, pois "uma retirada rápida após a destruição do regime do Hamas criaria um vácuo de poder que seria preenchido por anarquia e grupos islamistas". Esse tipo de dominação por forças ainda mais radicais ficou demonstrada, por exemplo, no Afeganistão após a retirada das tropas americanas.

Em tais circunstâncias, como poderia se configurar uma nova ordem em Gaza? Tanto Milshtein quanto o cientista político Stephan Stetter, da Universidade da Bundeswehr (Forças Armadas da Alemanha), em Munique, veem diversas opções: todas são mais ou menos problemáticas.

Alternativa 1: Israel controla a Faixa de Gaza

Um quadro possível seria Israel voltar a controlar Gaza diretamente, por meios militares, como fazia até 2005, na qualidade de potência ocupadora. Isso, entretanto, poderia provocar nova resistência militante, além de ter impacto fatal para o equilíbrio regional, ressalva Stetter.

"Aí haveria em Israel vozes defendendo a retomada de assentamentos na Faixa de Gaza. E isso seria lenha na fogueira de todos que querem atiçar esse conflito israelo-palestino e mantê-lo ativo."

Além disso —pelo menos teoricamente, nos termos do direito internacional— o país ocupador teria também obrigações perante a população sob seu poder. "Quem teria que assumir essa tarefa seria principalmente Israel, e isso excederia todas as suas capacidades financeiras." Sobretudo após o baque econômico que lhe acarretaram os ataques terroristas de 7 de outubro de 2023 pelo Hamas.

Possivelmente o país tampouco conseguiria defender perante seus aliados ocidentais uma nova ocupação do território palestino. Ficariam também seriamente abaladas suas relações com os Estados árabes com que Tel Aviv já firmou ou pretende firmar acordos de paz.

Outro problema é que os ocupadores passariam a ter que se proteger de uma Faixa de Gaza totalmente hostil. Como resume o periódico político Foreign Affairs: "Israel se transformaria numa direção de presídio e passaria a reger um gigantesco campo de prisioneiros" —algo com que Gaza há muito é comparada.

Alternativa 2: Autoridade Nacional Palestina assume o poder

A Autoridade Nacional Palestina (ANP) poderia retornar a Gaza e passar a administrá-la. Milshtein aponta o ponto fraco: liderada por Mahmoud Abbas, a ANP segue funcionando como governo na Cisjordânia, com presidente e primeiro-ministro, mas na prática só controla um pequeno território, enquanto Tel Aviv detém o poder no território palestino.

"Temos que considerar quão fraco e impopular Abu Mazen é", observa o especialista israelense, empregando o apelido pelo qual o líder palestino Abbas é conhecido sobretudo no mundo árabe. De fato, a ANP e o partido de Abbas, Fatah, são extremamente malquistos na Cisjordânia: sua corrupção e falta de pulso político têm gerado repetidos protestos populares.

A ANP é também acusada de pouca legitimidade democrática: a última eleição presidencial transcorreu em 2005, e desde então Abbas rege praticamente como líder palestino "eterno", sem corroboração válida pelo povo. Enquanto no Ocidente ele é criticado por declarações antissemíticas e insuficiente distanciamento do terrorismo do Hamas, na Cisjordânia não são poucos os que o acusam de não se impor com a determinação necessária perante o ocupador israelense.

Stephan Stetter menciona mais um senão: "Se a ANP assumisse a Faixa de Gaza após uma vitória israelense sobre o Hamas, alguns poderiam acusá-la de aproveitadora, de ter tomado o poder às custas das vítimas da guerra." Isso daria mau nome à Autoridade Palestina, embora "ao mesmo tempo, em todos os outros cenários futuros, ela deva desempenhar um papel importante para a Faixa de Gaza".

Alternativa 3: Administração civil mista palestina

Uma opção melhor, ainda que também problemática, seria uma administração civil mista palestina, propõe Michael Milshtein. Esta se comporia de diferentes representantes da sociedade palestina, inclusive prefeitos, em conexão estreita com a ANP.

Tal modelo poderia ter o respaldo do Egito, Estados Unidos, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos. Seria preciso partir do princípio que tal ordem só contaria com estabilidade breve, "mas seria muito melhor do que todas as outras alternativas", afirma o especialista israelense.

Alternativa 4: Administração pelas Nações Unidas

Kosovo e Timor Leste são exemplos de que —do ponto de vista puramente teórico— também as Nações Unidas estão aptas a assumir a administração de uma zona de conflito após a derrota de uma das partes, lembra Stephan Stetter.

"Na Faixa de Gaza, porém, isso não é realista. Neste caso será muito mais difícil, se não impossível, pois esse conflito está excessivamente no foco de atenção mundial. Uma participação —possivelmente forte— dos Estados ocidentais também seria vista de modo muito crítico." Também difícil seria estabelecer um mandato da ONU nesse sentido.

Alternativa 5: Administração por Estados árabes

O especialista em conflitos Stetter prefere um outro cenário, em que certos países árabes assumiriam a liderança administrativa da Faixa de Gaza em conjunto com a Autoridade Nacional Palestina.

"Por outros motivos, isso também seria do interesse de alguns Estados árabes, especificamente aqueles com fortes ressalvas em relação à [organização transnacional sunita] Irmandade Muçulmana, da qual o Hamas é o ramo palestino. O Egito baniu a Irmandade, na Arábia Saudita e nos Emirados Árabes ela é combatida."

Embora nos países citados, impelida pelo clima anti-Israel entre as populações, a retórica oficial atualmente enfatize a solidariedade com os palestinos e o sofrimento dos civis, "uma derrota do Hamas não seria malvista em Riad e Cairo", argumenta Stetter.

Acima de tudo, num tal cenário seria possível convencer os palestinos que seus interesses fundamentais —autodeterminação nacional e solução de dois Estados— não estariam sendo sacrificados: "Para tal, entretanto, são necessárias forças coesas, também em cooperação com o Ocidente e as Nações Unidas."

A fim de tornar tal modelo economicamente viável, é importante apoio não só político como financeiro. Stetter está convencido que, além de proporcionar uma perspectiva aos palestinos, essa solução também traria mais segurança a Israel.

Mas diante da atual escalada, com milhares de mortos, não está claro se e a que preço até mesmo Estados árabes com relações oficiais com Tel Aviv se disporiam a tal missão —e ao eventual próprio fracasso. Possivelmente tal modelo só entrará em questão no médio prazo.

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