Descrição de chapéu
Henry Kissinger

Em 2003, Kissinger escreveu na Folha sobre realinhamento da ordem mundial após 11 de setembro

Estadista criticou a tendência europeia de descrever a administração americana como sendo formada por figuras semelhantes a Rambo

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Henry A. Kissinger

Folha republica texto de Henry Kissinger, morto nesta quarta (29), de 13 de abril de 2003.



Enquanto a atenção do mundo se volta à reconstrução do Iraque no pós-guerra, os EUA se veem obrigados a debruçar-se sobre um problema maior: como lidar com os deslocamentos tectônicos no interior da aliança atlântica revelados pelos lances diplomáticos pré-conflito.

As duas aliadas mais fortes dos EUA na Europa continental, França e Alemanha, opuseram-se ativamente a uma política pela qual o presidente americano se dispunha a arriscar vidas americanas e buscaram apoio no resto do mundo para a sua oposição.

Esse cisma atraiu a Rússia para o confronto mais explícito com os EUA desde o final da Guerra Fria. E esse padrão se repete na polêmica surgida com esses aliados em torno do papel que a ONU deve exercer no pós-guerra iraquiano.

A continuação dessas tendências pode provocar a erosão progressiva da aliança militar ocidental, que durante meio século foi a base da política externa americana. O fim da Guerra Fria e de uma ameaça comum foi pouco a pouco solapando muitas das premissas subjacentes da Otan. Apesar disso, os EUA continuaram por uma década dominados pelo hábito, enquanto, sob a superfície, muitos na Europa se inquietavam diante da crescente disparidade de poderio militar e crescimento econômico entre os dois lados do Atlântico e também diante da afirmação agressiva dos interesses nacionais feita pela nova administração americana.

O período que se seguiu aos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 trouxe os ressentimentos latentes à superfície, sob a bandeira do unilateralismo versus multilateralismo. A solidariedade inicial suscitada pela imagem da América como vítima se enfraqueceu quando os EUA conferiram uma feição militar ao desafio, declarando guerra ao terrorismo. E desapareceu com a elaboração da estratégia da ação preventiva.

Bush aponta, como se indicasse algo na distância para Kissinger
Henry Kissinger com George W Bush, então candidato republicano à presidência dos EUA, em 12 de julho de 2000 - Roberto Schmidt/AFP

Embora tivesse se tornado necessária em função das ameaças à segurança lançadas por grupos particulares não afetados pela dissuasão, na medida em que não têm território a defender, e inacessíveis a quaisquer esforços diplomáticos, porque buscam a vitória total, e embora essa ameaça tivesse sido agravada pelo perigo de armas de destruição em massa caírem nas mãos de terroristas ou de Estados irresponsáveis, a ação preventiva contrariava os princípios de soberania. Esses princípios justificavam a guerra só nos casos de resistência contra uma agressão ou na iminência de um ataque. Alguns aliados europeus resistiam à ideia implícita de que os EUA poderiam modificar por decreto princípios estabelecidos.

Razões profundas

Entretanto, mesmo admitindo que, nas condições de emergência que se seguiram ao 11 de Setembro, os EUA se apressaram a agir sem consultas prévias com seus aliados e, em alguns momentos, pareceram exagerar ao retratar-se como estando sempre certos, a pressa e o gosto com que França e Alemanha contestaram a estrutura da aliança que garantiu ao Ocidente a vitória na Guerra Fria é algo que tem causas profundas.

O fato de a França e a Alemanha anunciarem que votariam contra os EUA no Conselho de Segurança já era algo sem precedentes. Mas mesmo isso perdeu importância quando comparado ao intenso lobby diplomático que os dois países fizeram contra a política americana em capitais distantes, ignorando meio século de tradição de aliança —e chegando ao ponto de criar a impressão, entre os líderes de países do Leste Europeu, que a cooperação com os EUA na guerra poderia dificultar sua entrada na União Europeia.
Com atitude de contestação quase prazerosa, os chanceleres francês e alemão convidaram seu colega russo, antigo adversário da Otan, a ficar ao seu lado em Paris quando repudiaram uma política que era prioridade número um de seu aliado de meio século.

Foi um gesto saído diretamente do livro de manobras do cardeal Richelieu, do século 17, que combateu a superpotência de então, o império dos Habsburgos, com uma série de coalizões sempre mutantes, até que a Europa central ficou dividida e a França ganhou destaque. Mas isso foi antes da era do terrorismo e das armas de destruição em massa, numa época em que a França ainda possuía meios para colocar em prática suas táticas implacáveis.

A irritação suscitada pela estratégia americana não poderia ter gerado uma revolução diplomática de tais proporções se as bases tradicionais da aliança não tivessem sido enfraquecidas pelo desaparecimento de uma ameaça comum, agravado pela ascensão ao poder de uma geração que cresceu durante a Guerra Fria e dá as conquistas dela como garantidas.

Essa geração não tomou parte da libertação da Europa na Segunda Guerra Mundial nem de sua reconstrução sob o Plano Marshall. Em vez disso, ela se recorda dos atos contra a Guerra do Vietnã e do posicionamento de mísseis na Europa. Na Alemanha, essa geração se sente frustrada com a crise econômica aparentemente permanente e com o processo de unificação que levou habitantes da ex-Alemanha Oriental a sentir-se mais ocupados do que libertados.

O "gaullismo", que fazia questão de uma Europa com identidade distinta da identidade dos EUA, não teve o apoio de nenhum dos principais países da Europa até que a crise do Iraque fez com que o presidente Jacques Chirac pudesse atrair a Alemanha, pelo menos temporariamente, para a versão "gaullista" da Europa.

Chirac explorou o temor de isolamento sentido por Gerhard Schröder, devido ao distanciamento dos EUA provocado por sua campanha eleitoral pacifista e antiamericana, para atrair a Alemanha para um caminho evitado por todos os outros chanceleres alemães anteriores, que sempre fizeram questão de tentar diminuir as divergências entre a Europa e os EUA. Essa convulsão diplomática dividiu a Europa entre os países que buscam a identidade europeia por meio do confronto com os EUA, de um lado, e, do outro, aqueles que, liderados pelo Reino Unido e pela Espanha, a veem como instrumento de cooperação.

Esses diversos cismas provocaram uma inversão ao menos temporária em Moscou. O presidente Vladimir Putin, que chegou ao poder quase ao mesmo tempo que George W. Bush, procurou uma saída do colapso catastrófico da posição internacional da Rússia após a Guerra Fria, concentrando a sua atenção na economia doméstica e na tentativa de realizar o status ainda remanescente da Rússia como grande potência por meio de consultas demonstrativas com os EUA, especialmente sobre o tema do islamismo.
Mas a harmonia externa levou americanos a perderem de vista a experiência dolorosa pela qual a Rússia passava: a perda de seu status de superpotência e a desintegração de seu império histórico. A Rússia não tinha alternativa senão aceitar a sua nova fraqueza, simbolizada pela revogação do Tratado Antimísseis Balísticos e pela ampliação da Otan até as suas fronteiras, mas ela o fez a contragosto, rangendo os dentes.

É possível que, se as consultas com os EUA tivessem tido alcance maior e sido menos centradas na agenda americana, a Rússia tivesse encontrado alguma compensação por sua perda de status e se mostrado mais relutante em mudar de rumo. Mas, da maneira como as coisas aconteceram, a oferta formulada pela França e pela Alemanha de uma frente unida contra os EUA na questão do Iraque agradou ao sentimento nacionalista russo e ofereceu ao país a perspectiva de novas opções, não dependentes da boa vontade americana. Seis meses depois que a expansão da Otan admitiu a entrada de três ex-repúblicas soviéticas na aliança, o chanceler russo pôde demonstrar à população de seu país a aparente inutilidade da Otan, ao postar-se ao lado de seus colegas francês e alemão num gesto proclamado como sendo símbolo da emancipação deles da política norte-americana.

Divisão europeia

Se a tendência atual nas relações transatlânticas se mantiver, o sistema internacional sofrerá modificações fundamentais. A Europa se dividirá em dois grupos definidos por suas atitudes em relação à cooperação com os EUA. A Otan vai mudar de caráter e tornar-se veículo daqueles que continuam a valorizar o relacionamento transatlântico. A ONU, tradicionalmente um mecanismo com o qual as democracias reafirmavam as suas convicções contra o perigo de agressão, vai transformar-se, em lugar disso, num fórum no qual aliados implementam teorias sobre como criar um contrapeso capaz de equilibrar o peso da "hiperpotência" americana.

A discussão em torno da administração do Iraque no pós-guerra ilustra esses perigos. Após um período de restauração da segurança e de busca por armas de destruição em massa, é do interesse dos EUA não exigir um papel exclusivo numa região situada no coração do mundo islâmico, convidando outros países a compartilhar a governança do Iraque —primeiro seus parceiros na coalizão e depois, progressivamente, outros países, além de um papel significativo à ONU.

Mas a proposta do chanceler francês, que ganhou o apoio tácito de Berlim, é que a presença americana no Iraque não tenha legitimidade enquanto não for confirmada por processos semelhantes àqueles que antecederam a guerra, o que teria o efeito de ampliar as rachaduras já existentes. O trabalho de reconstrução do Iraque no pós-guerra terá de reconhecer que uma base internacional ampla é desejável, mas também admitir a imprudência de se utilizar o multilateralismo como slogan e a ONU como instituição para isolar os EUA.

Aconteceram coisas demais para que seja possível simplesmente voltar aos "negócios de sempre". A revitalização do relacionamento transatlântico será crucial se quisermos que as instituições globais funcionem efetivamente e que o mundo deixe de retroceder para uma política de poder ao estilo do século 19. E essa revitalização precisa ser baseada num senso de destino comum, em lugar de buscar transformar a aliança numa rede de segurança "à la carte".

Se não for possível encontrar uma base comum —ou seja, se a diplomacia pré-guerra do Iraque se tornar o padrão comum—, os EUA serão levados a montar coalizões criadas especificamente para cada situação, tendo como parceiros os países que formam o núcleo da Otan que permanece comprometido com o relacionamento transatlântico. Seria um fim lamentável para uma parceria que se manteve por meio século.

É chegada a hora de pôr um fim à discussão sobre unilateralismo versus multilateralismo e nos concentrarmos sobre a substância. Nossos adversários europeus nas controvérsias recentes deveriam parar de encorajar a tendência de suas mídias de descrever a administração americana como sendo formada por figuras semelhantes a Rambo, sedentas de guerra, e os EUA como se constituíssem um obstáculo institucional à realização das metas da Europa, em lugar de parceiro na conquista de metas comuns.

De sua parte, a política americana precisa acabar com o desnível entre a filosofia global exposta em nível presidencial e a tática de curto prazo da diplomacia cotidiana. Para que os parceiros se tornem mutuamente mais previsíveis, são necessárias consultas mais intensas, especialmente em relação aos objetivos de médio prazo. E temos uma agenda extensa pela frente: frear a proliferação das armas de destruição em massa, discutir as implicações políticas da globalização, acelerar a reconstrução do Oriente Médio.

Já é mais do que hora de iniciar uma discussão dos princípios que reconheça a necessidade ocasional de uma ação preventiva sem, entretanto, permitir que cada país a defina por conta própria.

Essas tarefas exigem uma base que ultrapasse a região atlântica. É provável que o eixo alemão-franco-russo seja transitório. As avaliações que levaram Putin a buscar um relacionamento estreito entre EUA e Rússia vão se manter e já encontraram expressão em várias declarações recentes do presidente russo. Quando as tentações da crise iraquiana tiverem passado, a Rússia vai constatar que constituíram um caso à parte e que seu interesse maior continua a ser manter a cooperação russo-americana. O desafio será conferir a essas convicções um caráter recíproco que seja menos dependente de consultas "ad hoc". Será preciso um diálogo sistemático sobre problemas globais. O encontro de Condoleeza Rice com Putin pode constituir um primeiro passo nessa direção.

O país que menos alterou a sua política sob o impacto do Iraque é a República Popular da China. Os processos inacabados de reforma doméstica e mudanças maciças em sua liderança levaram a China a comprometer-se com um longo período de paz e ausência de tensões. Assim, o país que, na fase inicial da administração Bush, muitos enxergam como adversário estratégico transformou-se em parceiro construtivo de longo prazo. Isso será especialmente verdade se a China e os EUA conseguirem chegar a um acordo quanto a uma abordagem multilateral do problema nuclear coreano e evitarem erros de cálculo com relação a Taiwan.

A preeminência militar americana é verdade inegável e continuará a sê-lo no futuro previsível. Uma política de equilíbrio de poder empreendida por aliados não poderá mudar essa realidade. Mas os EUA podem esforçar-se para traduzir a sua hegemonia num fomento sistemático do consenso internacional. Se seus aliados europeus agirem com esse espírito, será possível evitar que discussões sobre unilateralismo e multilateralismo se transformem em profecias que se realizam.

Tradução de Clara Allain

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