Guerra cultural tenta reverter declínio do francês num mundo dominado pelo inglês

Québec, província canadense que tem língua francesa como único idioma oficial em país bilíngue, é epicentro de disputa

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Québec

"Se você não compreende inglês, isso é problema seu." Foi assim que a gerente de um McDonald's do Québec respondeu à cliente que reclamou de ser atendida em inglês na província canadense cuja língua oficial é o francês.

A cena, gravada na semana passada, viralizou no país, e evidencia uma guerra cultural que tenta reverter o declínio da influência da língua francesa num mundo dominado pelo inglês.

Bandeiras de países parte da comunidade francófona global na ilha de Djerba, na Tunísia, em novembro de 2022
Bandeiras de países parte da comunidade francófona global na ilha de Djerba, na Tunísia, em novembro de 2022 - Fethi Belaid/AFP

Atualmente, o francês é a quinta língua mais falada no mundo, atrás de inglês, mandarim, hindu e espanhol. Cerca de 321 milhões de pessoas falam o idioma no mundo, a maioria na África, onde ex-colônias da França seguem a cartilha da língua de Molière nas escolas.

Como o continente africano é aquele onde a população mais cresce no mundo, há previsões de que o francês se torne a primeira ou segunda língua mais falada do planeta em 2050. Ao mesmo tempo, a prevalência do inglês nos meios digitais e científicos fez o francês perder espaço nas últimas décadas.

Com dois idiomas oficiais, inglês e francês, o Canadá é o campo de batalha mais agudo dessa disputa, como sugere o episódio na loja de fast food. Mas é no mundo acadêmico que a erosão do uso do francês, e as medidas para revertê-lo, escalaram no Québec.

Em outubro, o governo da província anunciou o aumento das taxas de matrícula universitárias para estudantes de outras partes do país e do mundo interessados em estudar no Québec, território de resistência do francês no Canadá.

A medida, evocada como uma proteção à língua francesa, é um golpe nas universidades anglófonas da província, que concentram 38% dos estudantes estrangeiros da região, entre elas, a Universidade McGill, em Montreal.

A cidade é sede da Agência Universitária de Francofonia (AUF), uma organização de cooperação internacional sexagenária que mantém uma das maiores redes universitárias do mundo, com cerca de mil instituições de ensino e pesquisa de 120 países.

A entidade escolheu a cidade do Québec como palco da terceira edição de sua Semana Mundial de Francofonia Científica, no início de novembro. O evento promove a produção científica em língua francesa e o intercâmbio de pesquisadores e estudantes membros da francofonia —nome dado à comunidade de países e pessoas que falam francês.

A AUF e sua rede de pesquisadores são um espelho das mudanças pelas quais o francês passa mundialmente. E, nos corredores do encontro mundial de francofonia científica, há mais estudantes africanos que franceses. O próprio reitor da AUF é o primeiro africano a ocupar o posto em 60 anos.

Ex-ministro da Educação Superior e Pesquisa Científica da Tunísia, Slim Khalbous, reafirma essa diversidade da língua. "A França faz parte do mundo francófono, mas o mundo francófono é muito mais diversificado do que a França."

Para ele, a promoção do francês não pode ser feita em oposição ao inglês. "Nosso problema não é o inglês, mas os valores que cada idioma carrega e que nos dão uma visão do mundo e uma interpretação das ciências e do conhecimento", afirma. "O risco de termos uma ciência só em inglês é ter apenas uma visão do mundo."

Mais do que a visão única do mundo, ministros da Educação e reitores de universidades francófonas reclamam dos prejuízos concretos que o domínio do inglês impôs à ciência produzida em francês, relegada à periferia dos debates científicos globais.

Entre 1995 e 2019, a percentagem de artigos acadêmicos publicados em inglês aumentou de 64% para mais de 90% em todo o mundo. Por sua vez, o francês diminuiu de pouco menos de 10% para 1%.

Para Jean-François Gaudreault-Desbiens, vice-reitor da Universidade de Montreal, a política canadense de aumentar taxas para estudantes internacionais é reativa e pouco eficiente. "O inglês é a língua da ciência em muitos domínios, e isso não vai mudar a curto prazo, mas há muitas medidas que podem ser tomadas para garantir que a concorrência seja um pouco mais igualitária"

Entra elas, cita, está o livre acesso às investigações do mundo francófono e a construção de parcerias entre países francófonos e não-francófonos, como o Brasil, para a promoção do plurilinguismo nas ciências que, segundo o vice-reitor, é uma forma de garantir também a diversidade ideológica no campo científico.

"Além disso, os algoritmos de busca privilegiam conteúdos em inglês, e precisamos analisar esses parâmetros para facilitar a descoberta de produções francófonas, numa preocupação que se aplica a todas as outras línguas que não o inglês."

Durante o encontro de autoridades do evento de francofonia científica, ministros de Estado de países tão diversos como Camboja, Marrocos, República Democrática do Congo e França fizeram coro à necessidade de solidariedade entre os países da francofonia para difusão da inovação científica como forma de desenvolvimento econômico.

"Precisamos de um novo contrato social para a diversidade linguística na produção científica que permita o desenvolvimento econômico sustentável dos nossos países", afirmou Abdel Baba-Moussa, secretário-geral da Conferência de Ministros da Educação da Francofonia (Confemen), com sede no Senegal.

A resistência de francófonos ao imperativo global do anglicismo vai além de confusões nos balcões de lojas de fastfood e da ampliação do alcance da produção científica em francês. Nesta semana, o presidente da França, Emmanuel Macron, inaugurou a Cidade Internacional da Língua Francesa, um centro dedicado à francofonia instalado no castelo de Villers-Cotterêts, cidade natal de Alexandre Dumas, autor de clássicos como "Os Três Mosqueteiros" e "O Conde de Montecristo".

O local é simbólico para a língua francesa. Foi lá que, em 1539, o rei François 1º assinou a ordem que tornou obrigatório o uso da língua francesa nos atos de administração e justiça, em substituição ao latim.

Durante o discurso de inauguração, Macron se posicionou contra a linguagem neutra de gênero, considerada uma invenção anglófona, e cuja adoção, prevista em projeto de lei, foi derrotada no Senado francês. "A força da sintaxe [da língua francesa] reside no fato de ela não ceder aos caprichos da época. Nesta língua, o masculino é o neutro."

A jornalista viajou a convite da Agência Universitária de Francofonia (AUF).

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