China luta para manter avanços em IA apesar de 'guerra fria' com os EUA

Regime investiu US$ 100 bi para obter autossuficiência em chips e reduzir vulnerabilidade às sanções americanas

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Shenzhen (China)

"O povo chinês é esperto. Dê para a gente uns cinco ou dez anos, e resolveremos esse problema", diz Xu Hao, diretor de serviços da Shenzhen Smart City, maior empresa de "cidades inteligentes" da China.

O problema em questão é a falta de chips ultra-avançados, essenciais para manter o progresso do gigante asiático no ramo da inteligência artificial (IA). Na guerra fria tecnológica entre o país e os EUA, a Casa Branca vem ampliando restrições à exportação dos semicondutores de ponta e aos equipamentos usados para fabricá-los.

Fachada da empresa de tecnologia Tencent, em Pequim, na China - Danilo Verpa - 6.nov.23/Folhapress

Os chips são necessários para treinar modelos com dados. Um exemplo são as centenas de milhares de câmeras espalhadas pelo país. Essas câmeras gerenciam o tráfego de carros e drones, indicam onde é necessário fazer reparos em estradas, apontam onde construir novas vias a partir de projeções de crescimento demográfico, e identificam supostos "criminosos" por reconhecimento facial.

Os componentes ainda são vitais para os carros, táxis e veículos de transporte público autônomos (isto é, sem motorista) que se multiplicam pela China; a entrega de comida por drones; os mais de cem "ChatGPT"s chineses, grandes modelos de linguagem; e inúmeros outros aspectos do cotidiano de uma população de mais de 1 bilhão de pessoas.

Pequim corre para fabricar seus próprios chips avançados, na tentativa de repetir a história de "nacionalização" da internet e das redes sociais do país. O Partido Comunista bloqueia as big tech no país há anos, fazendo uso de uma espécie de Grande Muralha digital que levou à criação das versões chinesas do Google, X, Uber, eBay, e outros —respectivamente, Baidu, Weibo, Didi, Alibaba, e Tencent, criadora do "super aplicativo" WeChat.

A nacionalização dos chips é uma das frentes da política industrial Made in China 2025. Lançada em 2015, ela já recebeu mais de US$ 100 bilhões —ou R$ 490 bilhões— do regime, segundo o CSIS (Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, na sigla em inglês).

A estratégia ganhou força a partir de 2018, quando o governo de Donald Trump começou a impor sanções sobre as empresas chinesas Huawei e ZTE. No papel, as restrições se deviam a violações da Huawei a sanções americanas contra o Irã. Mas depois das últimas duas rodadas de restrições à exportação de chips e equipamentos para Pequim, entre 2022 e 2023, ficou claro que o propósito é brecar a indústria de alta tecnologia chinesa.

"O objetivo é limitar o acesso da China a chips que podem alimentar avanços em inteligência artificial e computadores sofisticados essenciais para usos militares", disse a secretária de Comércio dos EUA, Gina Raimondo, em outubro.

Em resposta, uma das porta-vozes da chancelaria chinesa, Mao Ning, disse à Reuters que os americanos "precisam parar de politizar questões comerciais e tecnológicas e de desestabilizar as cadeias de fornecimento globais".

Apesar de todas as sanções, a Huawei lançou, em setembro, o Mate 60, um novo celular com um chip de 7 nanômetros, surpreendendo vários analistas que duvidavam da capacidade chinesa de desenvolver essa tecnologia.

Segundo a consultoria especializada em semicondutores TechInsights, foi a SMIC, a maior fabricante de chips do país asiático, que produziu o chip. Ao lado da Huawei, ela lidera uma força-tarefa criada em março pelo regime chinês para acelerar a substituição de importações. Além disso, houve outras demonstrações de avanços chineses na área: o lançamento de um chip de memória ultra avançado em um drive ZhiTai Ti600.

Não se sabe, porém, se o país consegue produzir em escala esses semicondutores ou se poderá, no curto prazo, fabricar os mais modernos, de 3 nanômetros. Para desenvolver um grande modelo de linguagem como o GPT, são necessários mais de 10 mil chips avançados.

"A China está duas gerações atrasada em relação a esses chips de processamento, e está emparelhada em alguns chips de memória. Será muito difícil para ela nacionalizar toda a cadeia de fornecimento de chips, nenhum país conseguiu fazer isso até hoje", diz Dan Hutcheson, vice-presidente da TechInsights.

Robin Li, presidente e fundador da Baidu —gigante de buscas chinês que atua na área de carros autônomos, chatbots e desenvolve seus próprios chips, os Kunlun—, afirma que a empresa ainda não foi afetada pelas sanções americanas, apesar de ainda depender dos chips da empresa californiana Nvidia.

À revista Time, Li disse que as restrições ''são uma preocupação", mas também podem ser uma oportunidade. "Se as restrições para comprarmos chips americanos ficarem cada vez maiores, os chips domésticos se tornarão uma opção viável."

A competição contra os EUA e a fabricação dos chips se tornaram uma questão de honra na China. O Huawei Mate 60 esgotou poucas horas após ser lançado, e muitos chineses afirmaram ter comprado o aparelho para apoiar a indústria nacional.

Pequim também adotou retaliações contra os EUA. O governo proibiu o uso de iPhones em órgãos estatais e a compra de chips da americana Micron para o setor de infraestrutura. Além disso, impôs licenças de exportação que dificultam a venda de gálio e germânio, dois minerais usados na indústria de alta tecnologia.

A rixa com os americanos está em toda parte. A BYD, maior fabricante de carros elétricos na China, por exemplo, alfineta sua concorrente americana até no showroom para clientes na cidade de Shenzhen, no sul. Lá, a empresa faz uma demonstração de como a bateria dos carros da Tesla supostamente explode durante colisões, ao contrário da chinesa.

Na Apollo Go, uma funcionária mostra, orgulhosa, os LiDARS usados em um dos veículos da empresa, e acrescenta: "São muito menores e melhores do que os americanos".

Para minimizar os efeitos da escassez de chips, muitas empresas têm buscado alternativas. Shenzhen, por exemplo, tem um movimentado mercado de chips contrabandeados. Algumas companhias importam os semicondutores por meio de empresas de fachada sediadas fora da China.

Enquanto isso, Baidu, Tencent, Alibaba e Bytedance —por trás do Douyin e de sua versão internacional, o TikTok— compraram US$ 5 bilhões (R$ 25 bilhões) em chips Nvidia nos últimos meses para fazer estoque. As mesmas Baidu e Tencent desenvolvem seus próprios semicondutores. E outras empresas tentam combinar vários chips menos avançados para obter o poder computacional dos mais poderosos —a um custo bem maior.

Por fim, muitos se aproveitam de brechas. É possível contratar por exemplo empresas de computação em nuvem —que detêm chips avançados— para realizar serviços de treinamento de dados, ou "alugar" semicondutores.

"Ainda não vimos o impacto real das restrições porque elas não entraram em vigor imediatamente", diz Matt Sheehan, pesquisador do think tank Carnegie Endowment for International Peace. "Além disso, muitas companhias chinesas tinham estocado chips e empresas como a Nvidia tinham criado chips específicos para a China que escapavam das restrições. Agora que as regras foram atualizadas e ampliadas, acho que veremos seus efeitos em 2024 e 2025."

"Quando as sanções começarem a surtir efeito, haverá um grande impacto sobre as empresas de IA chinesas, tornando muito mais difícil e caro treinar modelos mais avançados. Mesmo assim, não acho que os EUA vão conseguir minar completamente o setor, e nos próximos anos os chineses vão encontrar atalhos técnicos e desenvolver recursos nacionais."

Segundo Xiaomeng Lu, diretora da área de Geotecnologia do Eurasia Group, as restrições americanas reduziram o ritmo nas áreas de semicondutores, supercomputadores e 5G na China. "Veículos autônomos e grandes modelos de linguagem também podem sofrer retrocessos", diz.

A executiva afirma não ver um distensionamento entre os dois países no futuro próximo e acha que, ao final, ambos saem perdendo com a guerra fria tecnológica. "Isso mantém a China atrasada em três gerações tecnológicas, mas também desacelera os EUA. As autoridades responsáveis por essa estratégia são muito focadas em segurança, e não levam as implicações comerciais a sério."

Os jornalistas viajaram a convite da Beijing Review, do Partido Comunista Chinês.

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