Descrição de chapéu The New York Times

Como o Hamas fez da violência sexual uma arma nos ataques de 7 de outubro

Testemunhas relatam ao New York Times estupros em diferentes locais, e médicos dizem terem visto sinais de abuso em corpos de mulheres

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Jeffrey Gettleman Anat Schwartz Adam Sella
The New York Times

No início, ela era conhecida simplesmente como "a mulher do vestido preto".

Em um vídeo pixelado, é possível vê-la deitada de costas com o vestido rasgado, as pernas abertas e a vagina exposta. Seu rosto está queimado e irreconhecível, sua mão direita cobre seus olhos.

As imagens foram gravadas nas primeiras horas de 8 de outubro por uma mulher que procurava por uma amiga desaparecida no local da rave no sul de Israel, onde, no dia anterior, terroristas do Hamas massacraram centenas de jovens israelenses.

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Os pais de Gal Abdush, no centro, e suas irmãs em sua casa em Kiryat Ekron, uma pequena cidade no centro de Israel - Avishag Shaar-Yashuv - 7.dez.2023/The New York Times

O vídeo se tornou viral, com milhares de pessoas respondendo, desesperadas para saber se a mulher do vestido preto era sua amiga, irmã ou filha desaparecida.

Uma família sabia exatamente quem era: Gal Abdush, 34, mãe de dois filhos de uma cidade de classe trabalhadora no centro de Israel, que desapareceu da rave naquela noite com seu marido.

Enquanto os terroristas se aproximavam dela, presa em uma rodovia em uma fila de carros de pessoas tentando fugir da festa, Abdush enviou uma última mensagem no WhatsApp para sua família: "Vocês não entendem".

Com base principalmente nas evidências do vídeo —que foi verificado pelo The New York Times—, autoridades policiais israelenses disseram acreditar que Abdush tenha sido estuprada. Ela se tornou um símbolo dos horrores sofridos por mulheres e meninas durante os ataques de 7 de outubro.

Autoridades de Israel afirmam que, onde quer que terroristas do Hamas atacaram —a rave, as bases militares ao longo da fronteira da Faixa de Gaza e os kibutzim—, eles violentaram mulheres.

Uma investigação de dois meses do Times descobriu novos detalhes dolorosos e evidenciou que os ataques contra mulheres não foram eventos isolados, mas parte de um padrão mais amplo de violência de gênero em 7 de outubro.

Com base em imagens de vídeo, fotografias, dados de GPS de telefones celulares e entrevistas com mais de 150 pessoas, incluindo testemunhas, pessoal médico, soldados e especialistas em casos de violências sexuais, o Times identificou pelo menos sete locais onde mulheres e meninas israelenses parecem ter sido sexualmente agredidas ou mutiladas.

Quatro testemunhas descreveram em detalhes impactantes ter visto mulheres sendo estupradas e mortas em dois lugares diferentes ao longo da Rota 232, a mesma rodovia onde o corpo seminu de Abdush foi encontrado jogado na estrada, em um terceiro local.

O jornal também entrevistou vários soldados e médicos voluntários que, juntos, relataram ter encontrado mais de 30 corpos de mulheres e meninas no local da rave e em dois kibutzim em um estado semelhante ao de Abdush —pernas abertas, roupas rasgadas, sinais de abuso em suas áreas genitais.

Muitos dos relatos são difíceis de ler, e as evidências visuais são perturbadoras.

O Times viu ainda fotografias do corpo de uma mulher que os socorristas encontraram nos escombros de um kibutz com dezenas de pregos cravados em suas coxas e virilha e um vídeo, fornecido pelo Exército israelense, mostrando duas soldados israelenses mortas em uma base perto de Gaza que pareciam ter sido baleadas diretamente em suas vaginas.

O Hamas nega as acusações de violência sexual. Ativistas israelenses ficaram indignadas com o fato de o secretário-geral da ONU, António Guterres, e a agência ONU Mulheres não terem reconhecido as muitas acusações até semanas após os ataques.

Investigadores da unidade policial nacional de elite de Israel, Lahav 433, têm reunido evidências de forma constante, mas não divulgaram um número de quantas mulheres foram estupradas, dizendo que a maioria está morta —e enterrada— e que eles nunca saberão. Nenhuma sobrevivente falou publicamente.

A polícia reconheceu que, durante o choque e a confusão de 7 de outubro, o dia mais mortal da história de Israel, não estava focada em coletar amostras de sêmen dos corpos das mulheres, solicitar autópsias ou examinar minuciosamente as cenas do crime. Naquele momento, as autoridades disseram que estavam concentradas em repelir o Hamas e identificar os mortos.

Uma combinação de caos, enorme tristeza e deveres religiosos judaicos significou que muitos corpos foram enterrados o mais rápido possível. A maioria nunca foi examinada, e, em alguns casos, como na cena da rave, onde mais de 360 pessoas foram massacradas em poucas horas, os corpos foram levados em caminhões.

Isso deixou as autoridades israelenses sem saber como explicar completamente às famílias o que aconteceu com seus entes em seus momentos finais. Os parentes de Abdush, por exemplo, nunca receberam um atestado de óbito. Eles ainda estão em busca de respostas.

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Vista aérea do acampamento do festival de música que foi invadido por homens armados do Hamas, perto da fronteira de Gaza, em Israel - Sergey Ponomarev - 11.out.2023/The New York Times

'Gritos sem palavras'

Sapir, uma contadora de 24 anos, tornou-se uma das principais testemunhas da polícia israelense. Ela não quer ser totalmente identificada, dizendo que seria perseguida pelo resto da vida se seu sobrenome fosse revelado.

Ela estava na rave com vários amigos e deu um depoimento aos investigadores e ao Times. Em uma entrevista de duas horas do lado de fora de um café no sul de Israel, Sapir relatou ter visto grupos de homens fortemente armados estuprando e matando pelo menos cinco mulheres.

Ela conta que, às 8h do dia 7 de outubro, estava escondida sob os galhos baixos de uma árvore de tamarisco, perto da Rota 232, a cerca de seis quilômetros a sudoeste da festa. Havia sido baleada nas costas e, sentindo-se fraca, cobriu-se com grama seca e ficou o mais imóvel possível.

A cerca de 15 metros de seu esconderijo, diz, ela viu motocicletas, carros e caminhões chegando, além de "cerca de 100 homens", a maioria vestidos com uniformes militares e botas de combate, alguns com roupas de treino escuras, entrando e saindo dos veículos. Ela afirma que os homens se reuniram ao longo da estrada e passaram entre eles fuzis, granadas, pequenos mísseis e mulheres gravemente feridas.

"Era como um ponto de encontro", afirma.

A primeira vítima que ela diz ter visto era uma jovem com cabelos cor de cobre, sangue escorrendo pelas costas, calças abaixadas até os joelhos. Um homem a puxou pelos cabelos e a fez se curvar. Outro a penetrou, afirma Sapir, e toda vez que a vítima se contorcia, ele enfiava uma faca em suas costas.

Ela conta que, depois, viu outra mulher "despedaçada" —enquanto um terrorista a estuprava, diz, outro pegou um estilete e cortou seu seio. "Um continuou a estuprá-la, e o outro jogou o seio para outra pessoa. Eles brincaram com ele, jogaram e ele caiu na estrada", diz Sapir.

Ela diz que os homens cortaram seu rosto, e então a mulher saiu de vista. Ao mesmo tempo, conta ter visto outras três mulheres sendo estupradas e terroristas carregando as cabeças decepadas de mais três mulheres.

Sapir forneceu fotografias de seu esconderijo e de seus ferimentos, e autoridades policiais sustentaram seu testemunho e divulgaram um vídeo dela, com o rosto borrado, contando parte do que viu.

Naquela mesma manhã, ao longo da Rota 232, a cerca de 1,6 quilômetro a sudoeste da área da festa, Raz Cohen —um jovem israelense que também havia participado da rave e havia trabalhado recentemente na República Democrática do Congo treinando soldados— diz que estava se escondendo em um leito de riacho seco. Sua posição fornecia alguma cobertura dos agressores que vasculhavam a área e atiravam em qualquer pessoa que encontrassem, disse ele em uma entrevista de uma hora e meia em um restaurante em Tel Aviv.

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Raz Cohen, consultor de segurança que sobreviveu aos ataques do Hamas em 7 de outubro - Avishag Shaar-Yashuv - 7.dez.2023/The New York Times

A cerca de 35 metros à sua frente, lembra ele, uma van branca parou, e suas portas se abriram. Cohen diz que viu cinco homens, vestindo roupas civis, todos carregando facas e um carregando um martelo, arrastando uma mulher pelo chão. Ela era jovem e estava nua e gritando.

"Todos se reuniram ao redor dela", diz Cohen. "Ela estava de pé. Eles começaram a estuprá-la. Eu vi os homens em meia-lua ao redor dela. Um a penetra. Ela grita. Ainda me lembro de sua voz, gritos sem palavras."

"Então um deles levanta uma faca", diz ele, "e eles simplesmente a matam".

O estilista Shoam Gueta, um amigo de Cohen, diz que os dois estavam escondidos juntos no leito do riacho. Ele afirma que viu pelo menos quatro homens saírem da van e atacarem a mulher, que acabou "entre as pernas deles". Gueta conta que eles estavam "conversando, rindo e gritando", e que um deles a esfaqueou repetidamente com uma faca, "literalmente a esquartejando".

Horas depois, a primeira leva de técnicos voluntários de emergência médica chegou ao local da rave. Em entrevistas, quatro deles disseram que descobriram corpos de mulheres mortas com as pernas abertas e sem roupa —algumas com as mãos amarradas com corda— na área da festa, ao longo da estrada, no espaço de estacionamento e nos campos ao redor do local da rave.

Descobertas semelhantes foram feitas em dois kibutzim, Be'eri e Kfar Aza. Oito médicos voluntários e dois soldados israelenses disseram ao Times que, em pelo menos seis casas diferentes, encontraram um total de pelo menos 24 corpos de mulheres e meninas nuas ou seminuas, algumas mutiladas, outras amarradas e frequentemente sozinhas.

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Voluntários e uma equipe de resgate entram no kibutz Kfar Aza, no sul de Israel - Avishag Shaar-Yashuv - 14.dez.2023/The New York Times

A Mulher de Vestido Preto

Uma das últimas imagens de Abdush viva, capturadas por uma câmera de segurança instalada em sua porta da frente, a mostra saindo de casa com seu marido, Nagi, 35, às 2h30 do dia 7 de outubro para a rave.

Ele estava usando jeans e uma camiseta preta. Ela, um vestido preto curto, um xale preto amarrado em volta da cintura e botas. Enquanto sai, ela dá um gole em um copo (seu cunhado lembra que era Red Bull e vodca) e ri.

Você tem que viver a vida como se fossem seus últimos momentos. Esse era o lema dela, dizem suas irmãs.

Ao amanhecer, centenas de terroristas se aproximaram da festa de várias direções, bloqueando as estradas de saída. O casal pulou em seu Audi, enviando uma sequência de mensagens enquanto dirigiam.

"Estamos na fronteira", Abdush escreveu para sua família. "Estamos saindo."

"Explosões."

Seu marido fez suas próprias ligações para a família, deixando uma mensagem de áudio final para seu irmão, Nissim, às 7h44. "Cuide das crianças", disse. "Eu te amo."

Tiros foram ouvidos, e a mensagem parou. Uma semana depois de seu corpo ter sido encontrado, três assistentes sociais do governo apareceram no portão da casa da família em Kiryat Ekron, no centro de Israel. Eles deram a notícia de que Abdush havia sido encontrada morta.

Mas o único documento que a família recebeu foi uma carta de uma página do presidente israelense Isaac Herzog expressando suas condolências e enviando um abraço. O corpo de Nagi foi identificado dois dias depois do da esposa. Estava gravemente queimado, e os investigadores determinaram sua identidade com base em uma amostra de DNA e sua aliança de casamento.

O casal estava junto desde a adolescência. Para a família, parece que foi ontem que Nagi Abdush estava indo trabalhar para consertar aquecedores de água, com uma bolsa de ferramentas pendurada no ombro, e Gal Abdush estava preparando purê de batatas e schnitzel para seus dois filhos, Eliav, 10, e Refael, 7.

Os meninos agora são órfãos. Eles estavam dormindo na casa de uma tia na noite em que seus pais foram mortos. A mãe e o pai de Gal solicitaram a custódia permanente, e todos estão ajudando.

Noite após noite, a mãe de Gal, Eti Bracha, deita-se na cama com os meninos até que eles adormeçam. Algumas semanas atrás, disse que tentou sair silenciosamente do quarto deles quando o menino mais novo a impediu.

"Vovó", disse ele, "quero te fazer uma pergunta".

"Querido", ela disse, "você pode perguntar qualquer coisa".

"Vovó, como a mamãe morreu?"

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