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Em disputa por Essequibo, Guiana e Venezuela usam bandeiras e até reggaeton

Ditadura de Caracas convoca população às urnas para decidir sobre região do país vizinho; vitória deve ser do 'sim'

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São Paulo

É pouco provável que a Guiana e seu presidente, Irfaan Ali, tenham recebido tanta atenção internacional quanto neste domingo (3), data do controverso plebiscito chamado por Nicolás Maduro para afirmar que a rural Essequibo —que corresponde a 2/3 do território guianês e tem a costa rica em petróleo— pertence à Venezuela.

Bartica, the jumping off point for what the Guyanese call "the interior," in Guyana, Nov. 8, 2015
Bartica, região da essencialmente rural Essequibo, na Guiana, a área disputada com a Venezuela - Meridith Kohut/The New York Times

Autoridades do país apostaram em slogans, bandeiras e outros emblemas nacionais para impulsionar o patriotismo de seus cerca de 800 mil habitantes —pouco menos que a população de São Bernardo do Campo, em São Paulo.

Nas redes, circulava a hashtag #EssequiboBelongsToGuyana (Essequibo pertence à Guiana). Já o presidente Ali escolheu outra frase para estampar o boné que usou na data. "All of it belongs to all of us" (tudo isso pertence a todos nós), dizia ela, justaposta a um decalque com o mapa da Guiana —o território completo, é claro.

Com o slogan na cabeça, ele fez uma transmissão ao vivo ainda antes do amanhecer para tranquilizar sua população: "Quero assegurar que não há nada a temer nas próximas horas, dias ou meses. Claro, nossa vigilância será muito intensificada, mas trabalhamos incansavelmente para garantir que nossas fronteiras permaneçam intactas."

É uma resposta ao temor de que o plebiscito dê a Maduro o ímpeto de invadir o vizinho, ainda que especialistas afirmem que essa possibilidade é pequena. Sem citar o líder do regime, Ali disse que a Venezuela tem uma nova chance de mostrar "maturidade e responsabilidade".

O presidente da Guiana, Irfaan Ali, cumprimenta moradores de Essequibo que usam camisetas com a frase 'Essequibo pertence à Guiana' no dia de referendo sobre o território realizado na vizinha Venezuela
O presidente da Guiana, Irfaan Ali, cumprimenta moradores de Essequibo que usam camisetas com a frase 'Essequibo pertence à Guiana' no dia de plebiscito sobre o território realizado na vizinha Venezuela - Reprodução/Facebook

Seu apelo não foi direcionado ao ditador, mas aos venezuelanos. "Vocês têm que decidir, consigo mesmos, se desejam fazer parte de um sistema que está em desacordo com o direito internacional."

A referência era a uma decisão da Corte Internacional de Justiça que, emitida na sexta-feira (1º), afirmava que Caracas não deveria agir para alterar o status quo de Essequibo. Maduro —que não tem tradição de atender a demandas de cortes internacionais— ignorou a ordem.

Mais tarde, ao sair às ruas para conversar com a população, o presidente usou uma camisa pólo bordada com um cocar mesclado à frase "One Guyana", uma Guiana. O apelo era às fortes raízes indígenas do país e, em especial, de Essequibo, terra de muitas aldeias.

Ao mesmo tempo, os venezuelanos iam às urnas. O regime pedia que eles respondessem "5 veces sí", ou "sim" a todas as perguntas feitas, visando a anexação de Guayana Esequiba (Guiana Essequibo), como a área é conhecida localmente, ao seu território. A reivindicação data do século 19, e tem origem na divisão colonial da costa caribenha da América do Sul.

A autoridade eleitoral anunciou que estenderia por duas horas o horário de votação, até as 20h locais (21h de Brasília), alegando que os cidadãos continuavam participando no momento do encerramento. O presidente Nicolás Maduro votou em seu centro eleitoral em um forte militar. "Hoje estamos votando como Venezuela por uma única cor, um único sentimento", disse a jornalistas depois de votar.

Há 25 anos em Caracas, o analista Phil Gunson, do centro de pesquisas Crisis Group, não espera surpresas quanto ao resultado do plebiscito, que Caracas afirma que será divulgado a partir da próxima sexta (8). "Não conheço um venezuelano que acredite que Essequibo não pertença à Venezuela. Mas uma coisa é crer nisso, outra é ver alguma utilidade nesse plebiscito."

Nas ruas, Gunson diz ter observado fraca movimentação de eleitores. Mas ele alerta que é de interesse do regime inflar as cifras de votação. "O voto não é obrigatório, e ele controla o Conselho Nacional Eleitoral. Não há uma campanha pelo 'não' nas urnas, de modo que não haverá testemunhas ou monitoração nos centros de votação", completa.

"Funcionários públicos também são pressionados a participar por seus superiores. E, bem, a Venezuela é um país de 'listas vermelhas'. Se você não vota quando o governo exige, isso complica sua vida. A economia está em muito mau estado. Nenhum trabalhador almeja isso."

O ditador da Venezuela, Nicolás Maduro, vota em plebiscito sobre Essequibo em Caracas - Leonardo Fernandez/Reuters

Os relatos da parca imprensa local que ainda fura a censura do regime, como o nativo digital El Pitazo, confirmaram a impressão de Gunson e também reportavam baixo comparecimento. Após quatro horas de urnas abertas na Escola Municipal Andrés Bello, na conhecida avenida Mohedano, em Caracas, por exemplo, menos de 500 dos 7.400 registrados para votar ali teriam comparecido, segundo o veículo.

A despeito disso, o diretor do Conselho Nacional Eleitoral alinhado ao chavismo, Elvis Amoroso, afirmou que o processo tinha registrado "três vezes mais votantes do que referendos anteriores", ainda de acordo com o El Pitazo. Amoroso não deu nenhuma cifra.

Enquanto isso, nas redes sociais, o apelo de Maduro por patriotismo era no mínimo comparável ao da Guiana. Nos últimos dias o líder do regime vestia apenas roupas estampadas com um mapa alternativo da Venezuela que incorpora Essequibo.

Em vídeos publicados em sua conta oficial no Instagram, Maduro aparece cantando em palanques, no ritmo reggaeton, trechos como "aqui o tenho, aqui o tenho; no domingo, temos referendo".

Numa outra produção, com adolescentes locais, chamava de "mochador" todos aqueles que não quisessem participar da votação. Nos bairros mais populares do país, o termo espanhol é associado à imagem de um traidor.

Phil Gunson não vê chances reais de o plebiscito validar uma invasão territorial do território guianês. Seu temor reside em como essa carta usada por Maduro durante as eleições de 2024, já bastante desacreditadas pela comunidade internacional.

"Criar um estado em Essequibo e oferecer nacionalidade são coisas meramente simbólicas. O que preocupa é, no curso da campanha, Maduro seguir jogando gasolina no fogo e abrir incidentes fronteiriços, enfrentamentos militares de menor escala", avalia.

O analista pondera que conclamar um plebiscito que mexe com a identidade venezuelana neste momento foi a estratégia do líder para desviar a atenção de seus problemas domésticos, notadamente a asfixia econômica e o sucesso das primárias da oposição que, mesmo perseguida por Caracas, elegeu em outubro o nome de Maria Corina Machado para concorrer à Presidência nas urnas.

Já no que diz respeito à população de Essequibo, ele diz não ver muitas dúvidas quanto aos seus anseios. "A dúvida é entre seguir em um dos países que mais cresce em todo o mundo, uma espécie de Qatar sul-americano, ou ser levado a um país que está em uma crise humanitária e cuja perspectiva para a economia é apenas encolher."

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