Imigrantes tiveram 130 mil filhos no Brasil em 9 anos; bolivianos lideram ranking

Filhos ajudam pais a se inserirem na sociedade, em especial por meio da língua, mas criação envolve série de desafios

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O boliviano Álvaro Roque Castillo ao lado de seu filho Aaron, 6, no CAPS Infantojuvenil da Mooca, em São Paulo Danilo Verpa/Folhapress

São Paulo

O brasileiro Hector Adrian, 6, cursa o 1º ano do Ensino Fundamental, em São Paulo, e, fazendo a tarefa de casa com ajuda do pai, o boliviano Percy Torrez Choque, ajuda-o a melhorar a escrita no português. A também boliviana Maria Eujenia Brónez vive situação similar com os filhos, também brasileiros. É um relato muito comum.

São famílias imigrantes, em média há dez anos no Brasil, que no país fincaram raízes de variadas maneiras, como no trabalho no setor têxtil. Mas também –ou especialmente– por meio de seus filhos e filhas.

Relatório lançado nesta quarta-feira (6) pelo OBMigra (Observatório das Migrações Internacionais) revela que pessoas migrantes tiveram 130 mil filhos no Brasil de 2013 a 2021. Os bolivianos lideram o ranking (21,3%), seguidos por haitianos (13,5%) e venezuelanos (12,3%).

Neste mesmo período, ao menos 1,5 milhão de registros de migrantes e solicitantes de refúgio foram compilados no país. Não é possível aferir quantos deles seguem no Brasil. Mas o número ajuda a dimensionar que, em média, 1 em cada 10 migrantes têm filhos no país.

"Se pensarmos que parte dessas pessoas, sobretudo solicitantes de refúgio, vem para o Brasil com a perspectiva de voltar para seus países quando a situação melhorar, mas então tem filhos no Brasil, essa se torna uma maneira de criar vínculos", diz Tadeu de Oliveira, à frente do setor de estatísticas do OBMigra. "São laços familiares que, afinal, permitem que essas pessoas criem raízes no Brasil."

No coração da Mooca, bairro paulista que ao lado de Pari, Brás e Belenzinho concentra grupos de bolivianos que trabalham majoritariamente em oficinas de costura, um grupo de pais e mães bolivianos que se reúnem semanalmente reflete um pouco da vivência dos pais migrantes no Brasil.

O grupo se encontra no Caps (Centro de Atenção Psicossocial) Infantojuvenil da região para acompanhamento de seus filhos, brasileiros, que receberam o diagnóstico de autismo. Enquanto as crianças realizam atividades com educadores em uma sala, ao lado seus pais também se reúnem para compartilhar vivências e desafios.

A costureira Dionicia Apaza é a que há menos tempo ingressou no grupo ao lado do filho, Elbis Miguel, 6. "Sempre me disseram que era normal que os 'varoncitos' [meninos] demorassem a começar a falar, mas com meu filho era diferente, eu sabia que havia algo errado. Foi só no Brasil que conheci a palavra autismo."

Enquanto Dionicia falava à reportagem, o técnico de eletrônica Álvaro Roque Castillo, também boliviano, acenava com a cabeça. Também a ele disseram que era normal que os meninos demorassem a pronunciar as primeiras palavras. Mas Álvaro, desde 2011 no Brasil, teve um amigo autista na escola na Bolívia e reconheceu os primeiros sinais quando o filho, Aaron, 6, demorou a falar. Há dois anos eles frequentam o Caps Mooca.

Álvaro tem, além de Aaron, outros dois filhos mais jovens, também brasileiros. Ainda que seu primogênito fique mais tempo com a mãe, ele brinca, sem disfarçar o orgulho, que é o único que consegue realmente se comunicar com ele.

Em geral esses pais e mães relatam que notaram os primeiros sinais em seus filhos porque as crianças não gostavam "da bulla", os ruídos e barulhos excessivos dos ambientes. No grupo do Caps, encontraram não apenas uma maneira de melhorar o aprendizado das crianças, mas de conhecer experiências similares às suas, com famílias também similares.

Muitos deles comentam como os filhos os ajudam a se inserir no Brasil, a despeito dos desafios. Maria Eujenia Brónez, 32, no Brasil desde os 16 anos, diz sempre ir acompanhada da filha mais velha, de 14, a consultas no SUS ou para resolver assuntos burocráticos. A adolescente a ajuda a se comunicar.

Em casa, Maria Eujenia, que também fala a língua indígena aimara, conversa apenas em espanhol. A filha conhece o espanhol, mas com alguns entraves. Há poucos anos, quando foram à Bolívia visitar a família, ela reclamava por não entender termos simples do cotidiano, como "torta" (bolo).

A costureira vai ao Caps ao lado do filho, Erizzon Jhonatan, 6. "A escola definiu que ele era autista porque chorava muito, não gostava de estar com outras pessoas, detestava a 'bulla', mas eu não conhecia a palavra."

Ela também relata, numa reflexão que é comum entre migrantes, um sentimento entre suas crianças de que são tratadas como "menos brasileiras" por serem filhas de pais nascidos em outros países. Foi com os relatos da filha que Maria Eujenia diz ter conhecido o que é preconceito.

No Caps, um dos principais desafios dos profissionais é se certificar de que o diagnóstico de autismo está correto e trabalhar para que o fato de ser parte de uma família migrante não conduza a estereótipos que prejudiquem seu desenvolvimento.

O time de profissionais cria para cada criança um PTS, o chamado projeto terapêutico singular, que atende também a família. "É preciso compreender em que medida essa não aquisição da fala, por exemplo, pode estar ligada a um lugar de isolamento social ao qual essas famílias migrantes estão sujeitas. Há aspectos de desenraizamento, de ausência de rede de apoio, já que na maioria do caso seus parentes estão no país de origem, que influenciam", diz a assistente social Juliana da Silva.

Atualmente, o Caps Infantojuvenil da Mooca atende 170 casos de algum transtorno do desenvolvimento, o que inclui o Transtorno do Espectro Autista (TEA). Destes, 72 são de crianças ou adolescentes de famílias bolivianas.

Os dados do OBMigra revelam que, aos poucos, serão os venezuelanos o grupo migrante a mais ter filhos no Brasil, um reflexo da entrada massiva de refugiados do país pela fronteira norte. Também mostram que são mulheres migrantes de 20 a 34 anos as que mais dão à luz.

O estatístico Tadeu de Oliveira aponta que, com a mudança de perfil migratório ao Brasil desde 2019, quando a porcentagem de mulheres e crianças migrantes se tornou mais expressiva, é possível projetar que nos próximos balanços sobre o tema haja ainda mais crianças brasileiras filhas de migrantes.

Outro recorte feito no relatório divulgado nesta quarta-feira revela o número de casamentos de migrantes no Brasil. De 2013 a 2021, foram ao menos 66 mil. A maioria (quase 60%) dos matrimônios é entre mulheres brasileiras e parceiros migrantes.

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