Itamaraty esvazia embaixadas na África e contraria discurso do governo de reforçar laços

Ministério discorda de que remoções prejudicam representação no continente e cita exceção a regra que abre espaço para prazo maior de permanência

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Vinicius Assis
Cidade do Cabo (África do Sul)

O Itamaraty começou a esvaziar embaixadas na África, contrariando discurso do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de que seu terceiro mandato seria marcado por reaproximação e reforço de laços com países do continente.

Ao menos nove diplomatas que estão em postos no continente africano já foram comunicados que terão de voltar ao Brasil até o meio do ano. Isso deve representar metade dos que estão há mais de seis anos no exterior.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante sessão da União Africana em Adis Abeba, em fevereiro
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante sessão da União Africana em Adis Abeba, em fevereiro - Michele Spatari - 17.fev.24/AFP

O Itamaraty quer que os diplomatas retornem, principalmente, por causa da organização de grandes eventos como a cúpula do G20, em novembro, e da reunião dos Brics e da COP30, em 2025. Segundo o ministério, a lista completa deve ser publicada no dia 14 de maio.

A notícia não agradou diplomatas e embaixadores no continente, que se preocupam com a diminuição das representações na África. A título de comparação, um deles diz que, em postos maiores, como Paris, um diplomata pode representar 10% da equipe, mas significa às vezes metade de uma embaixada africana.

Por lei, um diplomata pode ficar até dez anos trabalhando fora do Brasil, desde que, passados os seis primeiros, os quatro restantes sejam cumpridos em postos na classificação dos que ficam na África.

Procurado, o Itamaraty afirmou discordar da ideia de que a política de remoção dos diplomatas prejudicará a representação no continente africano. A pasta citou uma portaria publicada em março na qual se abrem exceções para quem quiser continuar fora do Brasil após os seis anos iniciais em lei cumpridos.

"Dentre os 22 postos abrangidos pela exceção, 13 localizam-se no continente africano (Abuja, Adis Abeba, Bamako, Brazzaville, Cotonou, Daca, Harare, Iaundê, Kinshasa, Lomé, Malabo, São Tomé e Uagadugu), o que demonstra o esforço administrativo de reverter casos de sublotação e de atender as necessidades de postos na região", informou o ministério em nota. A medida, porém, não difere na prática da determinação já existente de passar os últimos quatro anos no exterior em representações cuja classificação interna abrange todas as nações da África.

Atualmente, 15 consulados e embaixadas do Brasil no exterior têm apenas um diplomata, sendo 11 no continente africano. Em um deles, o único diplomata que há meses trabalha sozinho afirma que chegou a receber ameaça de morte porque negou visto a uma pessoa que apresentou documentação falsa para conseguir a autorização. Fazer este tipo de investigação ocupa boa parte do tempo dos diplomatas em atividades consulares.

Na nota, o ministério afirma que há 8 postos na África com apenas um diplomata, mas apuração da reportagem contabiliza 11.

Em 33 embaixadas e 2 consulados-gerais que o Brasil mantém no continente africano há pouco mais de 80 diplomatas no total. Apenas na França e Suíça, são quase 100.

O Itamaraty tem recebido telegramas de embaixadores em países africanos reclamando de falta de diplomatas e funcionários para funções administrativas.

A reportagem teve acesso a alguns. No dia 1º de fevereiro, a embaixadora Ellen Barros descreveu as condições de trabalho em Burkina Fasso como "insustentáveis". No próximo mês de junho ela completa dois anos trabalhando sem o auxílio de outro diplomata.

Os serviços consulares tiveram que ser suspensos em novembro por conta de investigações da polícia do país que chegaram a três funcionários locais da embaixada do Brasil, contratados cerca de cinco meses antes, acusados de fazerem parte de um esquema de venda de vistos brasileiros. Foi o segundo caso do tipo nesta embaixada no ano passado.

Outro telegrama reclamando de falta de estrutura chegou ao Itamaraty em agosto do ano passado, enviado pelo embaixador do Brasil no Quênia, Silvio Albuquerque, também responsável por mais quatro países (Ruanda, Uganda, Burundi e Somália). Na época, ele relatou que duas vagas de diplomatas não estavam preenchidas. Os diplomatas estrategicamente acompanham assuntos relevantes nos países onde estão. Mas o telegrama vindo do Quênia lembrava que não havia alguém responsável por acompanhar a política interna de Nairóbi.

Na semana passada o embaixador Antonio Augusto Martins Cesar assumiu a direção do departamento de África no ministério, substituindo a embaixadora Ana Paula Simões, recém-nomeada cônsul-geral do Brasil em Hartford, nos Estados Unidos.

Cesar foi embaixador do Brasil na Tanzânia, Comores e Seychelles. Também passou pelo Sudão, Gabão, África do Sul e Namíbia. Ele comandou ainda a divisão da África Central e do Oeste do continente na pasta, de 2008 a 2010. Nos dois anos seguintes, foi responsável por temas africanos no gabinete do ministro.

"A política externa brasileira atual vinha com uma expectativa grande de retomada das relações com os países africanos. Isso, no entanto, não aconteceu na profundidade e na velocidade que se era esperado", afirma Ana Saggioro Garcia, professora adjunta de Relações Internacionais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

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