Descrição de chapéu Portugal

Presidente de Portugal diz que país precisa reparar crimes da escravidão

Um ano após pedir desculpas por exploração de mão de obra africana, Rebelo de Sousa fala em reparação por era colonial, mas sem dizer como

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São Paulo

Em declaração rara sobre um tema considerado tabu na Europa, o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, disse que o país luso é responsável por crimes que ocorreram durante o período da escravidão transatlântica e da era colonial. Segundo o social-democrata, Lisboa deve arcar com os custos do que foi cometido no passado. Ele não especificou, porém, como seria feito o processo de reparação histórica nem apresentou um pedido formal de desculpas.

Os comentários foram feitos em entrevista a jornalistas estrangeiros na noite de terça-feira (23), às vésperas de manifestações em memória da Revolução dos Cravos, movimento que pôs fim à ditadura portuguesa e que completa 50 anos nesta quinta (25). A revolução teve a participação de militares que estavam descontentes com guerras nas "províncias ultramarinas" —à época, Portugal era um dos poucos países a ainda manter um império colonial, na África e na Ásia.

O presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, no Palácio de Belém, em Lisboa - Pedro Nunes - 9.nov.2023/Reuters

"Há ações que não foram punidas e os responsáveis não foram presos? Há bens que foram saqueados e não devolvidos? Vamos ver como podemos reparar isso", afirmou Rebelo, acrescentando que Portugal assume "total responsabilidade" pelos erros. "Devemos arcar com os custos."

Milhões de africanos foram sequestrados, transportados à força em navios e vendidos como escravos durante mais de quatro séculos. Aqueles que sobreviviam à viagem eram levados para trabalho forçado em plantações nas Américas, em especial no Brasil e no Caribe. Portugal teve um papel importante nesse sistema, já que o país traficou quase 6 milhões de africanos, mais do que qualquer outra nação europeia.

No ano passado, Rebelo já havia dito que o país deveria se desculpar e assumir responsabilidade pelo tráfico de escravos. Na ocasião, o presidente luso foi o primeiro líder de uma nação do sul da Europa a defender tal atitude. Mas ele tampouco apresentou um pedido formal de desculpas.

"Pedir desculpas às vezes é a coisa mais fácil de fazer. Você pede desculpas, vira as costas e o trabalho está feito", disse o social-democrata em 2023, após uma visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Nesta terça, ao ir além e mencionar uma reparação, ele repetiu que "pedir desculpas é a parte fácil".

Em Portugal, o presidente é chefe de Estado, não de governo —função exercida pelo primeiro-ministro, atualmente Luís Montenegro. Rebelo tem papel moderador e não possui função legislativa, mas pode pressionar o debate público sobre a responsabilização do país por crimes ocorridos no passado.

As declarações do presidente provocaram reações dentro e fora de Portugal. Anielle Franco, a ministra da Igualdade Racial do governo Lula, afirmou que os comentários foram muito importantes e contundentes. Segundo ela, o posicionamento é resultado de séculos de cobrança da população negra.

A ministra também cobrou das autoridades lusas ações concretas. "Nossa equipe já está em contato com o governo português para dialogar sobre como pensar essas ações e, a partir daqui, quais passos serão tomados", afirmou.

Já em Portugal, Rebelo foi chamado de traidor por políticos do partido de ultradireita Chega. "Eu repudio veementemente essas declarações, lamento que elas tenham sido feitas em nome do Estado português, [...] lamento o que devem estar a sentir os antigos combatentes neste momento", afirmou André Ventura, o líder da legenda. "Isso é uma traição ao povo português e à sua história. É uma traição profunda dos 50 anos do 25 de Abril [início da Revolução dos Cravos]."

Segundo especialistas, Portugal até aqui tem falhado em confrontar o passado. Críticos dizem que pouco se ensina nas escolas sobre o papel do país na escravidão —a era colonial, aliás, durante a qual territórios hoje de Angola, Moçambique, Brasil, Cabo Verde e Timor Leste foram submetidos ao domínio português, é frequentemente mencionada como uma fonte de orgulho.

A própria declaração de Rebelo no ano passado foi marcada por uma ponderação contraditória que romantiza o modelo escravocrata. Na ocasião, o presidente português disse que a colonização do Brasil também teve fatores positivos, como a difusão da língua e da cultura portuguesa. "Mas, do lado ruim, a exploração dos povos indígenas, a escravidão, o sacrifício dos interesses do Brasil e dos brasileiros."

A ideia de pagar reparações ou fazer outras correções tem ganhado força em todo o mundo. Em 2022, por exemplo, a Holanda pediu desculpas pela colonização e a escravidão na África e na Ásia. Também anunciou a criação de um fundo de € 200 milhões destinado a medidas que sensibilizem a população a respeito do tema.

Em uma das iniciativas mais recentes, o Fórum Permanente das Nações Unidas sobre Pessoas de Ascendência Africana recomendou, em junho de 2023, a criação de um tribunal internacional que trate das atrocidades que remontam à escravidão.

O escopo de qualquer tribunal ainda não foi determinado, mas o grupo recomendou, em relatório preliminar, que a corte deveria tratar de reparações por escravidão, apartheid, genocídio e colonialismo. O tribunal ajudaria a estabelecer normas legais para reivindicações complexas de reparações internacionais e históricas, dizem seus defensores.

A repatriação de patrimônio cultural oriundo de antigas colônias é outro tema discutido em Portugal. No ano passado, o governo anunciou que se preparava para fazer um levantamento junto a museus lusitanos, mas, até aqui, não fez qualquer promessa de que devolverá peças hoje pertencentes ao acervo português.

Com Reuters

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