Descrição de chapéu Bolívia

Golpe frustrado e acusações de trama de Arce ampliam incertezas dos bolivianos

População enfrenta crise econômica com fim do ciclo do gás e polarização entre presidente e Evo Morales, seu ex-padrinho

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Mulher aymara caminha perto de policiais que fazem guarda nos arredores da sede presidencial, na praça Murillo, em La Paz, que militares tentaram invadir no dia anterior

Mulher aymara caminha perto de policiais que fazem guarda nos arredores da sede presidencial, na praça Murillo, em La Paz, que militares tentaram invadir no dia anterior - Aizar Raldes / AFP

La Paz

Cada boliviano guardará na memória, à sua maneira, as cenas de tentativa de golpe militar em La Paz, a capital da Bolívia, durante a tarde desta quarta-feira (26). Para muitos, o supermercado estará nessas imagens: houve uma enorme corrida às compras.

Em meio a uma grave crise econômica que gerou inflação, escassez de dólares e queda nas reservas, a população desse país andino temeu que, com o golpe —ou ao menos com sua tentativa—, houvesse disparada dos preços. Muitos compraram o que puderam.

O motorista Franz se conteve, mas conta sobre um amigo que comprou 25 frangos de uma só vez no fim da tarde. Pagou 50 bolivianos (R$ 40) por cada. "Temia a hiperinflação, é claro", diz ele. O receio não se justificou, mas é expressão do cenário de ampla incerteza.

Com motivação ainda nebulosa, o movimento militar frustrado —encabeçado pelo general Juan José Zúñiga, que havia sido posto na chefia do Exército pelo próprio presidente Luis Arce e agora está detido por atentar contra a democracia e a Constituição— apenas agravou esse cenário. Apesar disso, havia um surpreendente clima de tranquilidade nas ruas de La Paz no dia seguinte à aventura golpista.

Não fossem as tropas de segurança na praça Murillo, onde fica a sede da Presidência que os militares tentaram invadir, ou bloqueios parciais de vias nos arredores da capital, um desavisado dificilmente diria que a Bolívia viveu mais uma turbulência após a crise de 2019 que culminou com a renúncia do ex-presidente Evo Morales.

No boca a boca, em raros comentários de muitos cidadãos que se mostram tímidos em falar à Folha sobre o cenário político, aparecem opiniões divididas. Tentaram acabar com nossa democracia, diziam uns. Foi um autogolpe de Arce, tudo combinado, bradavam outros, ecoando o que alegou o próprio Zúñiga após ser destituído do cargo.

São, afinal, argumentos que refletem a polarização do país. O MAS (Movimento ao Socialismo), partido criado por Evo, está rachado entre os evistas e os que defendem Arce, antes pupilo e hoje inimigo do ex-presidente, ainda a principal figura política boliviana.

O racha na sigla levou a uma quase paralisação da Assembleia Nacional, prédio que está justamente ao lado da sede da Presidência que militares tentaram invadir, e diluiu a base de apoio. Agora, Evo, que governou de 2006 a 2019 e insiste em voltar à Presidência mesmo impedido de concorrer novamente em 2025, deixa ventilar a versão do autogolpe.

Ministros de Arce rebateram e disseram que o general agiu por conta própria. Em reservado, membros do Executivo afirmam que foi Evo quem armou com Zúñiga para tirar Arce do poder e derrubar quem ainda compete com ele nas fileiras do MAS. Segundo o governo, ao menos 17 militares foram presos até aqui, e outros três são procurados.

Enquanto isso, as raras pesquisas de intenção de voto mostram que Evo pode ser popular, mas também é amplamente rechaçado, com mais da metade da população declarando que jamais votaria nele. Tampouco é positivo o cenário para Arce, com uma popularidade que em vários levantamentos marca abaixo de 20 pontos percentuais.

O que levou ao tombo do apoio do presidente, que é economista, foi justamente a economia. "Lucho" Arce, como é conhecido, assumiu um país que saía do ciclo de glórias colhidas pela exportação de gás natural, que permitiu injeções de financiamento em programas sociais.

De outrora 5,6% do Produto Interno Bruto boliviano em anos como 2013, a renda oriunda do gás esteve em menos de 2% do PIB nos últimos anos. A torneira fechou. A pandemia e a alta de preços internacionais durante a Guerra da Ucrânia engrossaram o caldo.

As reservas internacionais diminuíram —de mais de US$ 15 bilhões em 2014 para US$ 3,4 bilhões no fim de 2022, chegando agora a US$ 1,8 bilhão. Os dólares para compra rarearam.

Em parte por isso, Argentina e Brasil estão na mira dos bolivianos. Exportar o gás natural que os argentinos têm produzido na região de Vaca Muerta para o Brasil por meio da infraestrutura já existente em território boliviano seria uma maneira de acelerar o ingresso de dólares. Mas esse plano ainda parece distante.

A demanda energética, afinal, em mais de uma vez já apareceu no contexto de golpes conduzidos no país andino. Quando Evo renunciou após intensos protestos, houve quem afirmasse dentro e fora do governo que o lítio, mineral fundamental na produção de baterias, estava na raiz da questão, uma vez que Washington teria participado dos planos para poder controlar mais facilmente as reservas.

Seja como for, os bolivianos seguem se perguntando quais serão os impactos reais dos episódios de 26 de junho, rechaçados amplamente pelos líderes da América Latina. Ao menos por ora, a comunidade brasileira em La Paz, de cerca de 2.000 pessoas, não se viu afetada nem sequer acionou os serviços diplomáticos.

A maior parte dos brasileiros está em outras cidades, como Cochabamba e Santa Cruz de La Sierra, menos afetadas. Justamente para essa última cidade está prevista uma viagem oficial do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no próximo dia 9, quando terá encontro oficial com Arce logo após a cúpula de chefes do Mercosul, no Paraguai.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.