Alemanha abre crise na Europa com discurso eleitoreiro anti-imigração

Vizinhos temem enfraquecimento da zona de livre circulação; tema antecipa campanha eleitoral de 2025 em Berlim

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São Paulo

A decisão do governo Olaf Scholz de endurecer a fiscalização das fronteiras da Alemanha, motivada por considerações eleitorais a um ano das próximas eleições parlamentares, gerou fortes reações de vizinhos e abriu uma crise na União Europeia, cujo princípio de livre circulação de bens e pessoas é um dos mais valorizados pelo bloco.

Na última segunda-feira (9), a ministra do Interior, Nancy Faeser, anunciou que Berlim vai reestabelecer bloqueios policiais ao norte e oeste, da Dinamarca à França, e começar a recusar a entrada de parte dos refugiados nas fronteiras. O país já fiscaliza suas fronteiras ao sul e leste —com a Suíça, Áustria, República Tcheca e Polônia.

A imagem mostra um homem com cabelo calvo e uma expressão séria. Ele está olhando para o lado, com um fundo neutro e desfocado. A iluminação é suave, destacando seu rosto.
O primeiro-ministro da Alemanha, Olaf Scholz, participa de entrevista coletiva em Berlim, capital do país - Liesa Johannssen - 13.set.24/Reuters

A medida é motivada quase inteiramente por preocupações políticas e vem sendo chamada de eleitoreira. A coalizão de Scholz enfrenta um derretimento nas pesquisas de intenção de voto a cerca de um ano das próximas eleições gerais, que decidem quem será o primeiro-ministro e a correlação de forças no Parlamento. Uma continuação do governo atual, formado pelo SPD (Partido Social-Democrata da Alemanha) de Scholz, os Verdes e o partido liberal FDP (Partido Livre Democrata) é considerada altamente improvável.

Soma-se a isso a pressão por uma completa reestruturação da política imigratória no país vinda do principal partido de oposição. A CDU (União Democrática Cristã), tradicional sigla alemã que já foi comandada por Angela Merkel, busca disputar votos de eleitores mais à direita com a sigla extremista AfD (Alternativa para a Alemanha), recém-vitoriosa em eleição regional.

Esse cenário político desolador para o governo se converteu em crise depois que novas informações vieram à tona a respeito da identidade do homem que matou três pessoas a facadas em um atentado terrorista na cidade de Solingen, no oeste do país. Horas depois do ataque, constatou-se que se tratava de um sírio cuja permanência na Alemanha era ilegal —ele deveria ter sido deportado em 2023, mas as autoridades não o encontraram.

Desde então, o presidente da CDU, Friedrich Merz, nada de braçada na imprensa local, dizendo repetidas vezes que o governo precisa reagir e adotar medidas contra a imigração imediatamente —quanto mais rígidas, melhor. No último dia 26, dois dias depois do atentado em Solingen, Merz sugeriu proibir temporariamente a entrada de todos os refugiados da Síria e do Afeganistão, uma medida considerada ilegal por especialistas e da qual o político recuou mais tarde.

Ao mesmo tempo, a CDU busca se esquivar de acusações da esquerda de que se curva à retórica extremista e xenofóbica da AfD. Merz disse na última quarta-feira (11) que a Alemanha "deve permanecer um país aberto e acolhedor", pontuou que serviços como hospitais, escolas e restaurantes não funcionariam sem imigrantes e reafirmou que seu partido "se posiciona de forma clara e inequívoca contra qualquer forma de xenofobia".

Em um esforço para se demonstrar aberto ao diálogo, Scholz recebeu Merz e a CDU para tentar acolher algumas das sugestões do partido. Mas as conversas rapidamente degringolaram e terminaram em acusações, com a oposição dizendo que o governo não estava disposto a ir longe o bastante e o premiê afirmando que Merz não agiu de boa-fé e buscou apenas criar um circo político.

As novas restrições nas fronteiras anunciadas pelo governo Scholz começam a valer na próxima segunda-feira (16) e vão durar, a princípio, seis meses. Berlim argumenta que, enquanto a União Europeia não conseguir controlar suas fronteiras externas (nos Bálcãs e no Mediterrâneo, principalmente), a Alemanha precisa fazê-lo à sua própria maneira.

Em uma tentativa de acalmar a crise política interna, porém, o governo conseguiu comprar uma externa: o anúncio, em especial a possibilidade de que refugiados possam ter sua entrada impedida, provocou rápidas condenações de países como Áustria, Polônia e Grécia.

Viena disse que se recusaria a aceitar de volta pessoas que tentem atravessar para a Alemanha, Varsóvia chamou a ação de inaceitável, e Atenas afirmou que o plano fere de morte a zona Schengen de livre circulação entre os países.

A legislação europeia só permite restrições nas fronteiras internas da UE como uma medida temporária e excepcional, e que precisa ser comunicada e justificada à Comissão Europeia —o que Berlim disse ter feito. Isso significa que a medida anunciada pelo governo alemão é legal, avalia Julian Lehmann, especialista em imigração do think tank Global Public Policy Institute, de Londres.

"Mas além da questão jurídica há uma questão prática", pontua Lehmann. "Até aqui, pessoas que chegam à Alemanha têm seu status de refugiado avaliado, e as autoridades verificam se podem estar no país ou não".

Segundo ele, porém, hoje isso não acontece na fronteira. "Realizar esse procedimento na fronteira vai exigir uma mudança logística tão grande que será impossível não haver consequências para o transporte de pessoas e mercadorias."

Lehmann afirma ainda que, embora os pedidos de refúgio na Alemanha venham aumentando nos últimos anos, eles ainda estão menores do que no passado, e que é difícil falar em crise migratória como se quer fazer crer nos discursos políticos.

"A CDU, como principal partido de oposição, utiliza uma linguagem que dá a entender que o Estado está perdendo o controle. E isso é uma distorção da realidade. Há um problema quando esse partido faz sugestões incompatíveis com o direito europeu —ou seja, [a CDU] decidiu deixar de lado a legislação da UE e, para justificar isso, precisa amplificar o tamanho da crise", avalia Lehmann. "Isso não é um bom sinal para a capacidade política dos partidos alemães."

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