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Alexandra Palt: O mundo precisa da ciência, e a ciência precisa das mulheres

Como podemos explicar que, após anos de luta pela igualdade de gêneros, a sub-representação das mulheres na ciência continua sendo tão gritante?

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Sylvia Earle, primeira mulher a chefiar agência atmosférica e oceanográfica dos EUA
Sylvia Earle, primeira mulher a chefiar agência atmosférica e oceanográfica dos EUA; mulheres ainda são exceção em altos cargos científicos no mundo - Greg Salibian/Folhapress

Ao mesmo tempo em que estes últimos meses ficarão em nossa história como um período de liberação global das vozes femininas no mundo do cinema, na política, no setor sem fins lucrativos e até nos negócios, existe um setor onde as vozes femininas permaneceram, surpreendentemente, silenciosas: a ciência. Isso acontece apesar do fato de que a ciência enfrenta o tipo de disparidade com a qual todos nós, como sociedade, deveríamos nos preocupar.

Se a proporção de mulheres envolvidas em carreiras científicas cresceu, muitas delas ainda se deparam com obstáculos para conquistar uma carreira longa e próspera. Consequentemente, na União Europeia, por exemplo, apenas 11% dos cargos sênior em instituições acadêmicas são atualmente ocupados por mulheres. Menos de 30% dos pesquisadores são mulheres, e apenas 3% dos prêmios Nobel de Ciência foram concedidos a mulheres cientistas.

Como podemos explicar que, após anos de luta pela igualdade de gêneros, a sub-representação das mulheres na ciência continua sendo tão gritante e, acima de tudo, quais são as consequências disso para o nosso mundo?

Elas são inúmeras, e devemos coletivamente procurar entendê-las, tanto para a sociedade que queremos construir quanto para o avanço do progresso e do conhecimento científicos, que são tão críticos para solucionar os grandes desafios do nosso tempo.

A ausência de mulheres tem provocado, e continuará provocando, importantes consequências. Consideremos duas áreas de aplicação científica.

Primeiramente, na área da saúde, há múltiplos exemplos. Será que realmente nos demos conta de que, por exemplo, durante muito tempo prevaleceu a ideia de que doenças cardiovasculares eram um problema masculino?

Os principais testes clínicos para reduzir fatores de risco eram liderados exclusivamente por homens. Até mesmo em 1999, foi observado que os médicos realizavam metade dos exames para doenças cardíacas em mulheres do que em homens.

O estudo de referência sobre a aspirina como um meio de reduzir o risco de parada cardíaca envolveu mais de 22 mil homens e nem uma única mulher. É muito triste verificar que isso levou a tratamentos inadequados para as mulheres.

A segunda área, que é igualmente preocupante, é o controle por parte dos homens da revolução digital, e as subsequentes implicações disso para as mulheres. Nos estágios iniciais do reconhecimento de voz, não havia dúvida com relação ao viés masculino no desenvolvimento de softwares.

Consequentemente, não faz tanto tempo assim, o número de erros de transcrição em que mulheres usaram aplicativos de reconhecimento de voz era consideravelmente maior do que entre suas contrapartidas masculinas, pois os aplicativos haviam sido concebidos desde o início por homens.

No campo da inteligência artificial, que terá um efeito definitivo sobre o nosso futuro, estudos também mostraram que bancos de imagens associam as mulheres a tarefas domésticas e os homens ao esporte, e que softwares de reconhecimento de imagem não somente reproduzem esses preconceitos, mas também os amplificam.

Ao contrário dos humanos, os algoritmos não conseguem combater conscientemente preconceitos adquiridos. Conforme a inteligência artificial invade gradualmente as nossas vidas, essas questões irão apenas aumentar. Se os robôs são usados para modelar o mundo no futuro próximo, é vital que eles sejam programados por homens e mulheres.

Claramente, a ideia não é dizer que as mulheres seriam melhores cientistas do que os homens, mas sim nos conscientizarmos de que precisamos de uma comunidade científica mais equilibrada em termos de representação de gênero, de forma a não nos privarmos da criatividade e do talento de todos, e para criar, por meio do progresso científico, uma sociedade mais justa.

Criar coalizões para uma ciência mais inclusiva é urgente, para tratar melhor dos desafios que o mundo enfrenta, ao mesmo tempo em que se avança o conhecimento para o benefício de todos.  

O mundo precisa da ciência, e a ciência, mais do que nunca, precisa das mulheres.

Alexandra Palt

É vice-presidente executiva da Fundação L’Oréal

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