Desde que instituída pelas empresas Vale, BHP Billiton Brasil e sua controlada Samarco Mineração, a Fundação Renova apropria-se da mesma semântica que chama de evento o maior desastre ambiental da história brasileira, que trata como auxílio financeiro a garantia de subsistência emergencial a que têm direito suas vítimas, como afetadas as pessoas atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão, ou como impactos os danos multidimensionais dele decorrentes.
Esta a terminologia constante do termo de acordo que aquelas empresas realizaram, em março de 2016, com a União, os estados de Minas Gerais e do Espírito Santo e com as entidades das suas administrações direta e indireta.
É certo que, em acordos posteriores que realizaram —seja somente com os Ministérios Públicos, seja com os Ministérios Públicos Federal e dos estados de Minas Gerais e do Espírito Santo, em conjunto com as Defensorias Públicas da União e desses mesmos estados—, foi empregada outra terminologia.
Obviamente, a análise da semântica proposta pela Renova (ou pelas empresas, como evidencia, com sinal trocado, o próprio nome da fundação que instituíram) não oferece a chave da solução para a reparação plena devida às pessoas atingidas (o que inclui o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado de que são titulares). Tampouco é algo a ser desconsiderado, porque expõe a visão que os responsáveis pelo desastre do rio Doce têm ou procuram transmitir à opinião pública.
Em artigo publicado nesta Folha (11/7), Bianca Pataro, analista da Fundação Renova, apresenta a tese de que o passado, nas regiões atingidas, foi ressignificado pelo desastre e que a memória surgida das narrativas dos atingidos muitas vezes é a coletiva, "tendo sido experimentada por gerações anteriores".
É como se o tempo imediatamente anterior a 5/11/2015 não fosse tão bom como o que teria sido recriado (antes que relembrado) pelos atingidos. Ou como se a "retórica da perda", outra expressão da articulista, fosse ilusória e afastada da realidade (senão no sentido, que cita em referência a Renzo Taddei, de que o desastre "é um dos estados possíveis do real").
Como, enfim, se o próprio desastre, além de ter operado a ressignificação do tempo passado, tivesse ele mesmo sido ressignificado por narrativa coletiva imaginada. Encontra-se subjacente no artigo, por assim dizer, o intuito de renovar a imagem das empresas responsáveis.
Para além da ideia que o nome da Fundação Renova sugere, a renovação —que evidentemente não poderá resgatar o espaço e o tempo passados— somente pode ser a da vida das pessoas e do meio ambiente (e neste ponto é preciso ter claro que a dimensão ambiental do desastre não é maior que a humana).
Buscar consertar a imagem das empresas que a instituíram, porém, constitui um desvio da finalidade estatutária da Fundação Renova.
O sentido das palavras não é, portanto, algo ocioso. Antes, revela as intenções e compreensões das empresas causadoras do maior desastre envolvendo barragens de rejeitos de mineração em todo o mundo.
Um bom começo na revisão da semântica das empresas, para que conjuguem adequadamente o verbo reparar segundo a gramática dos direitos humanos, seria que, descendo o rio Doce até a foz, se desculpassem sentidamente —em uma espécie de justiça transicional e mediante ações concretas de reparação— por terem trazido lama e sofrimento às populações atingidas.
A tentativa de ressignificar a dimensão do desastre e de desconstruir a percepção da dor dos atingidos não contribui em nada para a solução esperada.
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