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Rogério Cezar de Cerqueira Leite

João de Deus e a energia nuclear

Ainda há quem veja interesse nacional em Angra 3

O físico Rogério Cezar de Cerqueira Leite, em março de 2017 - Keiny Andrade - 29.mar.17/Folhapress
Rogério Cezar de Cerqueira Leite

Não é preciso ser um cientista, um intelectual ou mesmo apenas um cidadão de bom senso para duvidar de que alguém, seja lá quem for, que realize as curas e "cirurgias espirituais" do sr. João de Deus. Entretanto muitos recorrem a este senhor e outros charlatões congêneres em busca de milagres. Talvez porque afinal não somos, nós humanos, seres assim coerentes. Talvez porque no íntimo ainda somos aquele homo erectus, aterrorizado com o cair da noite e com os monstros que habitavam as cavernas.

Será que é esta mesma síndrome a responsável pela insistência recalcitrante na recuperação de Angra 3?

Tudo começou com o correto general Geisel, que, não obstante, deu uma de seguidor de João de Deus com o contrato nuclear Brasil-Alemanha. Se Maquiavel não disse, deve ter pensado: "Para derrotar um bom projeto a melhor arma é um mau projeto com a mesma finalidade". Muito provavelmente a principal razão para o desenvolvimento pífio da ciência e tecnologia nuclear no Brasil nesses últimos 30 ou 40 anos foi o acordo Brasil-Alemanha.

Não faz muito tempo, o jovem e inteligente ministro da Ciência e Tecnologia, Eduardo Campos, tomou o avião da FAB e veio a Campinas. Lula queria finalizar o reator Angra 3, empacado havia 20 anos. "Temos potencial hidroelétrico para pelo menos 30 ou 40 anos, e em algumas décadas a energia fotovoltaica, a eólica, a bioeletricidade serão muito mais baratas", argumentei. Duas semanas depois, Angra 3 era reativado. Todavia, até hoje continua tão empacado quanto estava há 15 anos.

É uma tecnologia de mais de 40 anos, portanto obsoleta. O custo de investimentos para acabá-lo é absurdamente elevado. A confiabilidade em equipamentos que ficaram armazenados por mais de 30 anos é reduzida. Os técnicos alemães que projetaram e construíram grande parte dos equipamentos já devem estar embalsamados. E ainda há quem acredita que seja de interesse nacional acabar Angra 3 e fazê-la operar regularmente.

Pois é, também há quem acredite nos milagres de João de Deus. Não é preciso lembrar os custos de descomissionamento de reatores nucleares e os incalculáveis gastos com as muitas centenas de anos de armazenamento do lixo atômico. Não há pesquisador honesto que não concorde que o Brasil precisa de tecnologia nuclear. Entretanto tampouco há quem duvide que o caminho para alcançar alguma competência no setor é por meio do trabalho árduo da pesquisa científica e aplicada. 

Houve um momento em que a Marinha do Brasil percebeu isso e teve um imenso sucesso com o desenvolvimento das ultracentrífugas para enriquecimento do urânio. Infelizmente ficou por aí...
Há pouco menos de uma década, o Ministério de Ciência e Tecnologia propôs a construção de um "reator multipropósito". Como não havia competência nacional para elaborar o projeto, contrataram uma firma argentina, decisão acertada para manter a incompetência nacional no pé em que estava.

A principal justificativa para o equipamento era a produção de radiofármacos. Hoje essa aplicação é realizada com aceleradores, o que reduz custos de produção por um fator de 3 a 4. Novamente a síndrome João de Deus, pois os mesmos atores insistem em contratar os argentinos para produzir o equipamento obsoleto. Como se vê, a síndrome João de Deus é muito mais generalizada do que se pensa.

Rogério Cezar de Cerqueira Leite

Físico, professor emérito da Unicamp, membro do Conselho Editorial da Folha e presidente do Conselho de Administração do CNPEM (Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais)

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