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Cristiane Battaglia

Mais um dia na quarentena de uma mãe-advogada

Odeio lives, mas também quero ter live própria!

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Cristiane Battaglia

8h: começa o dia. Café para a mais velha. "Lavou o rosto? Penteou o cabelo?" Coloco-a na live de inglês. Desce, café para o mais novo. Sobe, lava o rosto dele. Acaba a live da mais velha, começa o ensino a distância do mais novo.

Assiste à vídeo-aula: “O que fazer com o 'Mad Monster'?” (queria saber!!). Aula de culinária: “A importância das frutas”. Acabam os vídeos. Desce para arrumar a louça do café. Começa a limpar o armário que não vê pano há... deixa pra lá. Louça na pia. Começa o almoço.

Cristiane Battaglia - advogada
A advogada Cristiane Battaglia e seus dois filhos - Arquivo pessoal

Daqui a pouco o pequeno tem live. Chegam as compras. Limpa as compras, pacote por pacote. Lava frutas e verduras. Pia lotada. Louça do café. Chama o pequeno para almoçar. A live vai começar. Dá almoço para o pequeno. Dá almoço para a mais velha. Marido almoça. Eu não. Não tomei café. Ainda lavando verduras, limpando o armário. Live vai começar. Não, "péra", errei o horário. Acaba de limpar o armário. Termina de lavar legumes. Lava a louça.

Agora sim, a live vai começar. Sobe para o escritório para colocar pequeno na live. Desce para procurar fone para a mais velha, que tem live em 10 minutos. Não acha o fone. Desce até a garagem para procurar o fone no carro. Ouve a mais velha gritando que a live começou. Não acha o fone. Coloca a mais velha no quarto. Começa a live. Internet não pega no quarto. A mais velha chora. "Eu só gosto do pequeno, porque deixei ele fazer live no escritório, onde a internet pega bem." O choro aumenta, vira escândalo.

Corre atrás do fone. Acha o fone (pequeno tinha pego para brincar). Sobe com a mais velha, com computador, com fone. Arranja outra mesa, ajeita a mais velha no escritório. Internet pega. Coloca o fone. O escândalo continua, a aula começou e e ela perdeu "tuuuuudo".

A professora do mais novo ouve o escândalo da mais velha. A mais velha ouve a professora do mais novo e reclama. Procura outro fone para o mais novo. Acha outro fone. Os dois de fone. Os dois em lives. Eu sento. Odeio lives. Olho para o lado, o marido sentado no sofá, laptop no colo, focado, trabalhando. Alheio às lives, alheio ao escândalo, alheio à caça ao tesouro dos fones. Penso no Recurso Especial que tenho que fazer (os prazos reabriram!). Sinto um nó no estômago. Uma lágrima escorre. Tristeza. Raiva. Solidão. Inveja! Só uma lágrima. Respiro fundo, levanto e desço para o quarto.

Decreto enxaqueca. Enxaqueca da alma. Lembro-me da reportagem publicada na Folha sobre os homens do direito na quarentena. Inveja! Também quero trabalhar, ter live própria! Quem será que pode ajeitar a minha internet? Eu também não entendo nada de tecnologia. Quem pode cuidar do meu filho mais novo?

Amanhã vou escrever um artigo, começar a minha tese de doutorado! Não, "péra", se eu conseguir terminar meu recurso, alimentar as crianças e cumprir o ensino a distância está ótimo. Está?

Cristiane Battaglia

Advogada e mãe de dois, escreveu este artigo de madrugada

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