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Roberto Giannetti da Fonseca

Reforma histórica, ainda que tardia

Nova legislação dificultará a sonegação tributária dos combustíveis

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Roberto Giannetti da Fonseca

Economista e empresário; ex-secretário-executivo da Câmara de Comércio Exterior (2000-2002, governo FHC), é presidente do Lide Energia e da Kaduna

Se tivesse que listar o caso mais grave de sonegação fiscal e concorrência desleal na economia brasileira, não hesitaria um segundo em afirmar que é o que vem ocorrendo nos últimos anos no setor de combustíveis. Como cidadão brasileiro, causa-me grande indignação assistir à impunidade com que esses casos têm sido tratados em todas as esferas da administração pública e da Justiça. Neste setor proliferam centenas de empresas fantasmas, algumas velhas conhecidas do fisco, mas que rotineiramente vêm praticando inúmeras fraudes tributárias, especialmente sonegando o ICMS devido aos estados de destino, onde os combustíveis são consumidos através da emissão de notas frias, adulteração das bombas, simulação de transportes e estoques, "barriga de aluguel" e devedor contumaz, entre outras.

A estimativa é que essa sonegação de ICMS, agravada pela insana guerra fiscal entre os estados, pode atingir um valor superior a R$ 25 bilhões por ano. Estima-se que as empresas sonegadoras abocanham atualmente de 25% a 30% do mercado total de combustíveis no país. Eles se aproveitam das diferenças de alíquotas de ICMS entre os estados, da leniência das autoridades e da deficiência da fiscalização para praticar verdadeiros malabarismos tributários que resultam na subtração de dezenas de bilhões de reais por ano dos cofres públicos estaduais.

Somente uma famosa empresa do setor, sediada no Rio de Janeiro, deve declaradamente cerca de R$ 10 bilhões ao fisco fluminense. E outra, em São Paulo, após sonegar no ano passado, em poucos meses, mais de R$ 1,5 bilhão, acabou confessando espontaneamente a dívida tributária de R$ 480 milhões, que veio a ser parcelada sem multa em módicas 60 prestações mensais. Outro estado da Federação oferece aos importadores de nafta (que na verdade já é gasolina) o recolhimento de apenas 1% de ICMS no despacho aduaneiro e a transferência do crédito interestadual de 12% para outros estados onde o combustível vai ser consumido. Nos portos brasileiros, muitas importações de gasolina são falsamente documentadas como sendo de nafta para gozarem de menores imposto e créditos tributários federais e passarem "despercebidas" na fiscalização aduaneira. Tal safadeza e deslealdade explícita não podem continuar!

Essa dinheirama toda acaba rateada nos bolsos dos empresários desonestos, de seus "laranjas" prepostos de ocasião, das autoridades corruptas e dos advogados inescrupulosos que os defendem. Diante da elevada lucratividade dessa atividade ilícita, que movimenta dezenas de bilhões de reais por ano, não causa surpresa a informação de que o crime organizado a elegeu para lavar o dinheiro do tráfico de drogas e para sua estratégia de "diversificação de investimentos".

Por isso deveríamos saudar com entusiasmo a aprovação, pelo Congresso Nacional, da nova legislação tributária a ser aplicada para o setor de combustíveis, que reúne no mesmo texto da nova lei complementar 192, de 11 de março de 2022, três alterações fundamentais para tornar a tributação mais simples e eficaz: a primeira medida é a aplicação de alíquota uniforme em todos os 27 estados, acabando com a prática de operações interestaduais fraudulentas. A segunda é a introdução do chamado imposto "ad rem", calculado não mais por um percentual sobre o preço, mas por um valor fixo por litro de combustível. E, finalmente, a terceira medida, que o imposto incida uma única vez na cadeia setorial; ou seja, um imposto monofásico, a ser recolhido pelos produtores ou importadores na primeira operação de movimentação do combustível.

Ninguém duvida de que a prática da sonegação tributária nos combustíveis será extremamente dificultada a partir da vigência da nova legislação. Ocorre que mesmo que a alíquota uniforme viesse a ser fixada em valor inferior ao que vigora atualmente neste ou naquele estado, ao coibir de forma contundente a sonegação, resultará que a base de incidência do imposto uniforme será certamente ampliada de forma significativa. A introdução dessas medidas deverá sim ampliar, e não reduzir como alguns alegam, a capacidade arrecadatória dos estados, além de melhorar o custo de conformidade das empresas distribuidoras e de reduzir a concorrência desleal. E, o que é mais importante, que venha a reduzir também o preço dos combustíveis para os consumidores aflitos na hora de encher os tanques de seus veículos.

Entretanto, alguns secretários de Fazenda surpreendentemente já anunciaram disposição de judicializar a aplicação da nova legislação, através de uma ação direta de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal, sob a alegação de perda de autonomia dos estados na fixação de seus próprios tributos, como é o caso do ICMS. Não há dúvida de que muito ainda depende de regulamentação infralegal em nível de Confaz (Conselho Nacional de Política Fazendária), por consenso entre os estados, ajustando alíquotas "ad rem" a serem periodicamente aplicadas, como ajustando regras para a destinação das receitas tributárias nas várias modalidades de operações estaduais e interestaduais. Mas seria um inaceitável retrocesso assistirmos a um eventual impedimento ou atraso da vigência dessa minirreforma tributária obtida no Congresso Nacional e em seguida sancionada sem vetos pela Presidência da República.

Os secretários de Fazenda, por sua vez, estimam que os Estados irão perder, no mínimo, R$ 18 bilhões em arrecadação por ano. Causa espanto que nenhum governador ou secretário de Fazenda tenha até o momento se referido ao aspecto da redução da sonegação tributária ao calcular as perdas e ganhos dessa equação. As contas divergem e são complexas; é verdade que não há clareza absoluta sobre os valores que irão resultar da nova sistemática tributária. Numa atitude responsável e cautelosa, creio que os governadores deveriam se abster da proposta de judicialização, que vai acarretar problemas enormes na aplicação da nova legislação, assim como irá favorecer os sonegadores de plantão que querem manter o statu quo vigente.

Mas uma coisa é certa: a partir da aplicação da nova legislação, a significativa redução da sonegação tributária e da concorrência desleal no setor de combustíveis será um ganho indispensável para toda a sociedade brasileira. A leniência com o crime tributário não deve mais ser admitida em nosso meio, sob o risco de eliminarmos da economia formal as boas empresas e os bons contribuintes,e de favorecer o crime organizado e toda sua nefasta influência na população brasileira.

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