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Salem Nasser

Gaza entre o silêncio e as fake news

Não me surpreendi com o silêncio da Folha ao ler o jornal na quarta-feira

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Salem Nasser

Professor de direito internacional da FGV Direito-SP, publica a newsletter salemhnasser.substack.com

Tenho o hábito de folhear o jornal de trás para a frente. Poderia dizer que tem algo a ver com a genética árabe e com o fato de que as línguas semíticas se escrevem a partir da direita. Mas é mais provável que tenha a ver com a ansiedade, na juventude, de ler a Ilustrada antes dos demais cadernos.

Digo folhear porque dizer "ler" seria dizer muito. Sobre os temas que mais me interessam, o jornal perdeu a capacidade de me informar. Quase não há fatos sobre cuja existência ele revele algo novo; e há muitos fatos cuja existência eu conheço e que o jornal ignora. Perdeu também a capacidade de instigar, sobre os acontecimentos, alguma reflexão informada por análises iluminadas. Os artigos e as colunas me revelam apenas as tentativas, do jornal e dos autores, de afirmarem as suas preferências e a lerem o mundo de modo a fazer com que ele corresponda às visões que sustentam, não o contrário. Leio sobre um mundo representado, não sobre o mundo real.

Campo de refugiados de Al-Maghazi após ataque de Israel em 15.jul.24; segundo autoridades de saúde em Gaza, total de mortos desde outubro de 2023 é de 38.664 - Marwan Dawood/Xinhua

Há poucos dias completaram-se nove meses da guerra em Gaza –com frentes paralelas na Cisjordânia, na fronteira entre Israel e Líbano, no Golan ocupado e a partir do Iêmen e do Iraque. Nesse período, muito se publicou sobre o assunto. Especialmente intenso foi o esforço de pessoas e instituições defensoras de Israel de publicarem peças que justificassem as ações militares daquele país.

Mais recentemente, esse esforço perdeu intensidade. Um amigo sugeriu que, assim como os muitos artigos de opinião eram voltados à proteção dos interesses de Israel, o silêncio é visto agora como a melhor estratégia para atingir o mesmo objetivo. Em outras palavras, uma vez revelada a enormidade dos crimes israelenses ao longo dos nove meses de guerra, que também tornou mais visíveis os crimes mais duradouros, de apartheid, de ocupação, de limpeza étnica, cometidos contra os palestinos, o melhor era não falar mais no assunto.

Nessa estratégia de não remexer a podridão para que o cheiro não revele ao mundo o rosto do carniceiro, essas pessoas e essas entidades têm como parceiros os meios de comunicação ditos do "mainstream". Como não posso fazer o mapa de todos esses meios, nos bastará o exemplo desta Folha.

A Folha diz, por seu editor, em entrevista aos leitores, e por seu mais recente ex-ombudsman, que mantém um equilíbrio, numérico, mas também substantivo, entre os artigos de opinião e as reportagens que apareceriam como favoráveis a Israel e à Palestina. Volto a lembrar da histórica campanha de publicidade da Folha que pintava um retrato de Hitler enquanto afirmava: "É possível contar um monte de mentiras dizendo só a verdade".

Ainda que verdadeira a afirmação no que diz respeito ao número de peças escritas, eu afirmo que não há equilíbrio no tratamento. Afirmo também que, ainda que houvesse equilíbrio, nos termos postos, esse equilíbrio seria injusto, porque coloca em situação de paridade o ocupante e o ocupado, o regime de segregação e as suas vítimas, o colonizador e aquele que é expulso de sua casa, o genocida e o povo a ele submetido.

Uma base em que se pode apoiar a ideia de equilíbrio sustentada pelo jornal é dada pela ideia de que a existência de ocupação, de apartheid, de limpeza étnica, de genocídio é objeto de disputa, questão de opinião. Ao não ter a coragem de dizer que não é assim, continua a permitir livre curso à mentira que se fantasia de equidistância.

E mais, ainda que tivesse algum mérito a noção de equilíbrio, como eu apontei em artigo publicado nesta Folha no dia 10 de outubro de 2023, o jornal escolheu seu lado ao decidir se referir sempre ao Hamas como "o grupo terrorista". Como eu disse então, a partir dali tudo o que Israel fizesse estaria justificado de antemão pela Folha.

Tudo o mais que o jornal tiver noticiado ou vier a noticiar sobre o assunto deverá ser lido à luz dessa tomada de posição. E enquanto a cada dois ou três dias se tem uma notícia vaga sobre o fato mais recente –um fato escolhido entre muitos possíveis– e uma análise que não nos ensina nada de relevante sobre a guerra, sobre a tragédia, sobre o que está em jogo, o leitor pode alimentar a ilusão de que está sendo informado.

Enfim, enquanto folheava o jornal na manhã de quarta-feira passada (10), não me surpreendi com o fato de que ele passava em silêncio sobre a guerra de Gaza. Tampouco me surpreendi com o fato de que na última folha, na coluna de Mariliz Pereira Jorge, o tema aparecesse na forma de falsas notícias. A colunista tem insistido em relatar fatos que não aconteceram no dia 7 de outubro. Diz que o New York Times, a ONU e a BBC confirmam, por exemplo, a violência sexual contra as mulheres, quando todos esses desmentiram as notícias.

Isso me fez lembrar de uma coluna de Luiz Felipe Pondé, de 21 de abril de 2024, em que ele diz: "Articulistas, jornalistas e colunistas são no Brasil, em sua total maioria (sic), contra Israel, mas nos comentários um monte de gente acusa os veículos de 'estarem a serviço do sionismo'. O que fazer diante de tal absurdo?".

O que fazer diante de tal absurdo é uma boa pergunta. Não sei o que pode significar uma "total maioria", mas me pergunto se ele tem em mente os jornalistas, articulistas e colunistas empregados, especialmente em grandes veículos, se deu uma olhada nos artigos escritos por ele próprio e seus colegas na Folha...

Foi Raduan Nassar quem se referiu aos sofistas como "aqueles trapaceiros da Antiguidade que se encarregaram na época de desmoralizar o uso da razão". Eles continuam entre nós.

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