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A polarização sistêmica

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Breno Bringel
Latino América 21

Polarização é uma palavra em moda no mundo político contemporâneo. Ainda assim, ela é utilizada no debate público de maneira ambígua e oblíqua. Costuma surgir na forma de dois polos que se apresentam como radicalmente antagônicos, mas embora estes se mostrem como “extremos” ideológicos, isso tem mais a ver com a construção dos agentes políticos sobre a polarização do que com a realidade.

Que Bolsonaro declare que o Partido dos Trabalhadores representa a encarnação do comunismo radical obviamente não significa que isso seja fato, O PT, na verdade, é um partido moderado. Mas a partir do momento em que o atual presidente brasileiro, com seu antipetismo visceral, elege o PT como seu principal inimigo político, e que esse partido trata de se reposicionar no novo cenário político, colocando-se na defensiva e tendo a extrema direita como principal oponente, a polarização está armada.

A polarização não existe de forma abstrata. É uma construção dos próprios agentes políticos em disputa, sempre retroalimentada por outros setores, especialmente os meios de comunicação. Ao cobrir de maneira frequentemente distorcida e desequilibrada os acontecimentos, e as figuras e posições políticas, diversas mídias acabam contribuindo para amplificar e tornar visível a polarização no cenário público. 

As redes sociais digitais também são um espaço privilegiado, hoje, para insuflar posturas de confronto que conduzem a divisão a planos mais íntimos da vida social. Isso significa que a polarização existe além dos partidos, das eleições e do comportamento político, e chega às ruas, às esferas cotidianas de sociabilidade, às famílias e às redes de proximidade.

Não é necessário que existam dois extremos ideológicos totalmente opostos para que se produza uma polarização política. Se entendemos a política como luta, ou seja, como uma atividade eminentemente conflituosa, a polarização se torna intrínseca à política e pode se dar entre forças muito diversas (de acordo com o momento, as correlações de forças e os interesses e objetivos de cada qual), e com intensidades distintas. 

De fato, a polarização pode oscilar entre o reconhecimento do outro como rival em uma lógica de competição e uma visão beligerante do outro como inimigo, em cujo caso o ódio e a violência costumam emergir fortes e os marcos regulatórios e legais terminam suspensos ou, ao menos, ignorados.

No imaginário (geo)político moderno, associamos a polarização a dois blocos de poder com projetos totalmente divergentes: capitalismo versus socialismo. Ainda assim, diferentemente de outros momentos de transição e consolidação da ordem mundial, como foi o caso da guerra fria, a polarização atual se produz entre forças sistêmicas, ou seja, entre agentes e posições que reforçam o capitalismo e que, apesar de diversos, não apontam para a contestação ou a ruptura do sistema degradado, e sim aproveitam suas múltiplas crises (econômica, política, ecológica, entre outras) a fim de se reacomodar, fortalecer ou, no melhor dos casos, gerar algumas brechas de reforma e defesa de direitos historicamente conquistados.

Vivemos hoje uma polarização sistêmica na América Latina e em várias regiões do mundo. Por um lado, temos em muitos países o fortalecimento de uma direita conservadora e amiúde autoritária, que é não só radicalmente neoliberal como atualiza fantasmas do passado, com suas roupagens coloniais, racistas, patriarcais e xenófobas, e busca articulá-los com interpelações diretas à sociedade. 

Apoiadas no avanço do pentecostalismo, no descrédito quanto à política institucional, na crise dos agentes políticos tradicionais, nas dificuldades de mediação entre o Estado e a sociedade, nas mudanças tecnológicas e nos erros do progressismo, as direitas contemporâneas se apresentam como inimigas da elite, mas contam com o apoio de boa parte da elite que está no poder. Elas destroem a democracia ao reivindica-la. Até golpes de Estado são justificados, com frequência, pela necessidade de "resgatar" ou "restaurar" a democracia.

Por outro lado, diante desse cenário, parte da esquerda latino-americana --especialmente a parte que capitaneou o "ciclo progressista"-- se volta hoje, curiosamente, à defesa de uma democracia liberal que, em suas origens, ela costumava criticar ferozmente. Se nas últimas décadas o debate girava em torno da democracia direta, da democracia participativa, da democracia intercultural e até de sua descolonização, o fortalecimento público da direita mais radical na América Latina levou parte da esquerda política a defender o sistema, as instituições, o Estado de Direito e uma visão muito restrita da democracia. 

Desse modo, na polarização sistêmica contemporânea, a direita se radicaliza e tem um caráter mais desordenador, enquanto os progressistas se voltam ao centro do tabuleiro político, aspirando "voltar" a um cenário e a um mundo que já não existem.

É importante recordar que a polarização não é necessariamente negativa, na política. Em muitos momentos da história, ela permitiu que a extrema-direita fosse bloqueada. Além disso, pode permitir a abertura de novos cenários e horizontes de justiça social e de emancipação. Mas não é esse o caso da polarização sistêmica atual, que, pelo contrário, fortalece os extremismos de direita e impede que a esquerda se fortaleça. 

Tende-se a pensar que, como consequência da polarização, as vozes moderadas perdem poder e influência. Isso costuma proceder, mas agora também estão sendo excluídas aquelas forças políticas transformadoras, movimentos sociais, formas comunitárias, resistências territoriais, lutas por bens comuns e em defesa da vida que não se encaixam na, nem se identificam com a, polarização sistêmica. 

Diante da oposição entre dois polos que hoje reforçam de maneiras distintas o sistema capitalista, a realidade social é simplificada profundamente, os problemas reais (e urgentes) de nossas sociedades são ocultados e a possibilidade de novos horizontes de futuro é restringida.


Breno Bringel é sociólogo e editor. Doutor pela Universidade Complutense de Madri. Professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e diretor do Núcleo de Teoria Social e América Latina (NETSAL). É presidente do comitê de movimentos sociais da Associação Internacional de Sociologia.

www.latinoamerica21.com, um projeto plural que difunde diferentes visões sobre a América Latina.

Tradução de Paulo Migliacci

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