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machismo CPI da Covid

Depoimento de médica na CPI da Covid inflama redes sociais com contorno racista

Nise Yamaguchi não foi corretamente nomeada nem por quem a defendia; independentemente da veracidade de sua fala, merecia respeito

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São Paulo

Quando ingressei na faculdade de jornalismo em Porto Alegre, um dos primeiros questionamentos que recebi de um veterano referia-se à minha genitália. Homem branco de cabelos loiros e olhos azuis, ele queria saber se a minha vagina ficava “na transversal”. Frente à minha confusão em relação à pergunta, complementou, com naturalidade: “Puxada, como seus olhos?”.

Inicialmente, pensei que sua ignorância tinha origem na falta de contato com pessoas amarelas (como são classificados os grupos étnico-raciais do Leste e Sudeste Asiático e seus descendentes no Brasil), menos presentes em solo gaúcho do que em São Paulo, meu estado natal.

Mas logo percebi que esse tipo de comentário não tem restrição geográfica e atinge mulheres de todas as idades. Desde crianças, adolescentes e estudantes universitárias até médicas de 62 anos em depoimento à CPI da Covid.

Embora o machismo não seja novidade na comissão que busca encontrar os responsáveis pelas mais de 400 mil mortes por coronavírus no país, no caso de Nise Yamaguchi ele também ganha contorno racista.

As redes sociais foram inundadas por comentários elogiosos à atuação do senador Otto Alencar (PSD-BA), que levou o "manterrupting" (o ato de um homem interromper a fala de uma mulher) e o "mansplaining" (o ato de um homem explicar algo a uma mulher como se só ele fosse detentor do conhecimento) ao extremo, não deixando Yamaguchi finalizar uma frase e insistindo de forma bastante incisiva em diminuir sua formação técnica com perguntas como "qual a diferença entre um protozoário e um vírus?".

"Tamagochi" e "Jaspion do mal" foram alguns dos termos usados em redes sociais para ofender a médica, que, segundo alguns usuários, estaria "acabando com o mito do japonês inteligente" —o chamado mito da "minoria modelo", que, conforme dito em reportagem recente pela psicóloga Karina Kikuti, imprime um "estereótipo positivo" nos amarelos e impede que se perceba a violência presente em determinados comentários, como esses.

Outros foram além, dizendo que, segundo "reza a lenda", "os orientais de brio se suicidam ao passarem uma vergonha desta".

Yamaguchi não foi corretamente nomeada nem por quem a defendia. Após passar a totalidade de sua fala desfiando elogios à médica, o senador governista Marcos Rogério (DEM-RO) a chamou, mais de uma vez, de "Nísia".

Apesar de parecer pequeno, o deslize evidencia a desumanização das pessoas racializadas, e é mais comum entre os amarelos do que se pode imaginar.

Durante toda a graduação, eu fui chamada de "japa". Assim como Nise, que compartilha da mesma origem cultural, eu respirava fundo, sorria e fingia que estava tudo bem.

Quando, no último ano, reuni toda a coragem que tinha para pedir que não usassem mais o que acreditavam ser um "apelido carinhoso", tive que ouvir, de um dos meus melhores amigos, "mas aí eu vou te chamar do quê?".

Passei por situação semelhante quando interpretei na TV uma estudante do ensino médio de nome japonês.

Nos bastidores, enquanto os demais atores eram chamados pelos seus nomes próprios, eu seguia sendo tratada como "Shizuko". Era como se eu só pudesse existir enquanto personagem ficcional criada pelos roteiristas daquela série infanto-juvenil.

Ou, em outro ambientes, pelos produtores de filmes pornográficos. Além de ser a categoria mais vista pelos homens em 2019, segundo levantamento do Pornhub, “japonesa” também foi o termo mais buscado, seguido de “hentai”.

“Coreana” e “asiática” ocupam a quinta e a sexta posições, enquanto “anime” fica na 14ª e “chinesa”, na 18ª. Dos 25 termos mais buscados no site de pornô, 6 estão relacionados a mulheres amarelas.

Graças à lógica dessa indústria, mulheres de ascendência leste-asiática são objetificadas e fetichizadas diariamente independentemente do ambiente em que se encontram.

Nenhuma mulher amarela que eu conheço passou incólume a clássicos como “Sempre quis ficar com uma japinha” e “Você é quietinha na cama também?”.

"Eu era fetichizada sem saber que era um fetiche”, conta a atriz Ana Hikari, 26. Primeira amarela a interpretar uma protagonista em novela da Globo —Tina, em “Malhação: Viva a Diferença” (2017)—, ela diz já ter ouvido comentários como esses tanto na vida pessoal quanto na profissional.

"Nos testes, eu ouvia coisas como ‘você tem um corpão para uma japonesa’. Na vida, já me disseram várias vezes que eu era parecida com as atrizes dos filmes pornô que eles assistiam", relata.

Embora a maioria de nós já tenha se acostumado a ouvir esse tipo de comentário, é preciso ficar alerta para casos como o do ataque que tirou a vida de seis mulheres de origem asiática em casas de massagem nos EUA.

Ainda que tenha negado motivação racista, seu autor, um homem branco de 21 anos, disse ter cometido os crimes para acabar com tentações, já que sofreria de “compulsão sexual”.

Mas não é preciso ir tão longe para encontrar a fetichização da mulher asiática.

“Quem tem fetiche em pornô de médicos liga na TV do Senado agora que tem um médico idoso comendo sem dó o c* de uma médica japonesa na CPI da Covid”, dizia uma publicação em rede social durante o depoimento da médica nesta terça (1º), apagada um tempo depois.

Não é exatamente o tipo de comentário que se esperaria de seu autor, um jornalista que se descreve como “ativista pelos direitos humanos e animais”.

Assim como eu jamais esperava ouvir de uma professora de história política de um grupo de teatro anarquista, que seu cachorro, um shih-tzu chamado Ho Chi Minh, era “da mesma raça” que eu.

Mas, como colocou Hikari, "o racismo não tem espectro político". Da mesma forma, o respeito também não deveria ter. E, independentemente de sua posição e da veracidade de seu depoimento, Nise Yamaguchi merecia ter sido tratada com uma quantidade mínima dele.

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