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Mathias Alencastro

Carta pela democracia terá seu lugar na história, mas ainda não terminou de ser escrita

Busca pelo consenso deixou manifesto monocórdico, mas o libertou de egos e deu voz a signatários

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São Paulo

A sensação de que estávamos vivendo um momento especial era palpável. Terminada a leitura das cartas pela democracia, na Faculdade de Direito da USP, a atitude protocolar, de braços ao longo do corpo e mãos juntas, foi imediatamente trocada por abraços efusivos e clima algo desencontrado de vitória.

A ausência de controles de segurança no evento nos lembra que, apesar de tudo, vivemos numa sociedade mais pacífica que a dos Estados Unidos. A presença de correspondentes estrangeiros dava a sensação de que a luta contra o autoritarismo no Brasil é pela sobrevivência da democracia no mundo.

Público presente na leitura de manifestos pela democracia, na Faculdade de Direito da USP, no centro de São Paulo
Público presente na leitura de manifestos pela democracia, na Faculdade de Direito da USP, no centro de São Paulo - Marlene Bergamo/Folhapress

As intervenções que antecederam a leitura tentaram, em diversas ocasiões, situar a carta na sua trajetória histórica. O manifesto só podia surgir em agosto de 2022, tal como a original precisou esperar até agosto de 1977. À época, a Amazônia também ardia, e as potências ocidentais, começando pela liderada pelo democrata Jimmy Carter, vislumbravam a possibilidade de uma abertura política no Brasil.

Dois elementos destoam no ato desta quinta. Primeiro é o caráter anticlimático do texto. A busca pelo consenso o deixou monocórdico, mas por outro lado o libertou de egos e deu voz aos seus signatários: desempregadas, enfermeiras, motoristas e policiais. Sua simplicidade narrativa combina bem com a singularidade da sua missão: comunicar o repúdio da sociedade aos ataques contra a democracia.

Em seguida, apesar do formalismo, a leitura agora é mais ambiciosa que a original porque age em diferentes espaços e tempos. Dirige-se aos que combatem Bolsonaro e a assassinados, perseguidos e torturados. Ela olha para o futuro quando pronuncia o fim de um passado autoritário que teima em se manifestar. A carta pretende encerrar, em uma única leitura, a era Bolsonaro e a ditadura militar.

É possível fazer vários paralelos com outros momentos, da Carta 77 de Vaclav Havel contra o regime comunista na Tchecoslováquia ao repúdio às tentativas de golpe na Argentina, narrada neste jornal pelo saudoso Clóvis Rossi, e na Espanha. Essas comparações servem para lembrar aos mais emocionados que os desdobramentos de hoje são imprevisíveis. Havel e seus companheiros foram reprimidos ferozmente, enquanto os socialistas liderados por Felipe González assumiram o governo espanhol. Na Argentina, os militares desapareceram definitivamente da politica, algo que jamais aconteceu no Brasil.

No momento da leitura da carta, Bolsonaro anunciou a redução do diesel, comunicando às fatias mais pobres da população que, enquanto as elites se ocupam dos valores, ele cuida da economia real. Essa velha artimanha será repetida à exaustão nos próximos dois meses. A leitura do manifesto certamente terá o seu lugar na história. Mas ela ainda não terminou de ser escrita.

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