Capítulo 1
O que aconteceu no Brasil em junho de 2013
Naief Haddad | Dois números podem expressar o assombro que foi junho de 2013. O primeiro é 2.000, estimativa de público para o protesto contra o aumento das tarifas de transporte público em 6 de junho, em São Paulo. Multiplique 2.000 por 500 e teremos 1.000.000, o segundo número. Duas semanas depois desse ato modesto na avenida Paulista, mais de 1 milhão de pessoas saíram às ruas do Brasil para se manifestar “contra tudo”. Palavras de ordem ligadas ao transporte público estavam presentes em meio a tantas outras. São Paulo estava em ebulição social e política, assim como Brasília, Rio, Belo Horizonte, Porto Alegre… Acompanhe a seguir os principais momentos de junho de 2013, o mês que virou capítulo inescapável da nossa história
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Não ao aumento da tarifa
A mobilização de 6 de junho, em São Paulo, certamente não foi a primeira do país contra o aumento das tarifas de ônibus, metrô e trem. Manifestações com esse objetivo tinham acontecido antes em outras capitais.
A diferença é que esse ato chegou à Meca dos protestos no Brasil, a avenida Paulista, conquistando uma visibilidade razoável. O público, no entanto, não impressionava: cerca de 2.000 pessoas, segundo a Polícia Militar. Eram poucos, mas gritavam alto contra o reajuste de R$ 3 para R$ 3,20.
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Pichação em estação de metrô da av. Paulista na noite de 6 de junho de 2013 - Fotos Fabio Braga - 6.jun.2013/Folhapress
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Policiais tentam conter protesto contra aumento da tarifa, na av. Paulista
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Policiais próximos a barricadas em chamas montadas por manifestantes em São Paulo (SP)
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Vidro da estação Brigadeiro do metrô quebrado durante protesto contra a alta das tarifas
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Abaixo a hierarquia
A partir daquela manifestação e da ocorrida no dia seguinte, o Movimento Passe Livre (MPL), responsável pela organização dos atos, ganhou mais notoriedade. Fundado em 2005 e formado por jovens militantes, o grupo defendia –e ainda defende– a gratuidade do transporte público.
Naquele momento, o MPL representava uma novidade entre os movimentos sociais de esquerda: além do apartidarismo, primava pela falta de hierarquia interna, um dos fatores que, segundo a polícia, dificultou a negociação nos momentos em que os atos saíram de controle.
Caio Martins, Monique Felix, Rafael Siqueira e Erica de Oliveira, integrantes do MPL - Zé Barretta - 17.jun.2013/Folhapress
Não temos presidentes, dirigentes, chefes ou secretários, todos têm a mesma voz e poder de decisão
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A tensão aumenta
O terceiro ato contra a alta das tarifas, no dia 11 de junho, chamou a atenção pela violência. Não que os protestos anteriores tivessem sido pacíficos –houve vandalismo e confrontos entre policiais e manifestantes. Desta vez, porém, o quebra-quebra ficou mais evidente. Estações de metrô foram depredadas; muros, pichados; vitrines, quebradas.
Segundo policiais, militantes jogaram pedras, paus e coquetéis molotov contra a PM. A reação veio num tom acima: balas de borracha, bombas de efeito moral e gás pimenta.
Pela primeira vez, os protestos de junho de 2013 foram o principal destaque da primeira página da Folha.
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Tática black bloc
Embora não fossem muitos, os black blocs assumiram papel de destaque nas manifestações. O termo, vale dizer, não designa um grupo definido, mas uma tática de manifestação iniciada na Alemanha nos anos 1980.
Buscavam atrair a opinião pública para algumas causas, como o anticapitalismo e o combate à violência policial, por meio do choque e podiam ser reconhecidos pelo uso de roupas pretas e de máscaras (para dificultar a identificação por parte de autoridades).
Como disse Pablo Ortellado, professor de políticas públicas da USP, "em 2013, quando black bloc se tornou algo popular, era possível encontrar todo tipo de gente envolvida: funcionários públicos, bancários e universitários".
Black bloc durante protesto na av. Paulista em julho de 2013 - Fábio Braga 26.jul.2013/Folhapress
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Encurralado
Na manifestação de 11 de junho, acompanhada por dezenas de fotógrafos, uma imagem ficou especialmente marcada.
A foto feita por Drago mostra o soldado Wanderlei Vignoli ferido. Em ação na praça da Sé, em São Paulo, o policial agarrou um militante e apontou sua arma para outros manifestantes.
Drago/SelvaSP
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‘Inaceitável’, diz Alckmin
Em Paris para participar de um evento, o então governador Geraldo Alckmin (na época no PSDB, hoje no PSB) e o prefeito Fernando Haddad (PT) criticaram as depredações ocorridas durante o protesto do dia 11. Em respostas às críticas, o MPL disse que as ações violentas partiram dos policiais e que os manifestantes apenas reagiram às agressões.
A polícia vai responsabilizar e exigir o ressarcimento de patrimônio destruído, seja ele público, seja ele privado. Isso extrapola o direito de expressão. Isso é absoluta violência, vandalismo, baderna e é inaceitável
Quando a manifestação já se diluía, é que começa uma ação de outra natureza, não mais associada à liberdade de se expressar, mas depredar, intimidar e provocar os tumultos
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Noite de caos
Os dicionários definem a palavra caos como “estado de completa desorganização, confusão” –distante de uma situação trivial, o substantivo deve ser usado com moderação. Não havia, porém, jeito melhor de descrever, de modo sucinto, o que aconteceu em São Paulo em 13 de junho.
Os soldados reagiram ao quarto protesto com enorme violência. Dezenas de pessoas ficaram feridas, entre elas dois jornalistas da Folha. Uma bala de borracha disparada por um PM atingiu o olho direito da repórter Giuliana Vallone. Mais de 190 pessoas foram detidas.
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Truculência policial
Programa da TV Folha, que foi ao ar em 16 de junho, exibiu cenas chocantes dos protestos dos dias anteriores em São Paulo.
Correram o mundo as imagens do campo de batalha em que as ruas paulistanas se transformaram no dia 13. A essa altura, porém, os protestos também se espalhavam por outras cidades. Naquele mesmo dia, também houve mobilizações expressivas em capitais como Rio de Janeiro e Porto Alegre.
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Vai ter Copa?
À medida que os protestos ganhavam público e visibilidade, as motivações para tomar as ruas se tornavam mais variadas. A gritaria contra o aumento das tarifas ainda ecoava com força, mas já não era a única pauta.
Em 15 de junho, dia da abertura da Copa das Confederações, em Brasília, tudo correu bem dentro do estádio Mané Garrincha, com vitória do Brasil por 3 a 0 contra o Japão. Do lado de fora, porém, policiais reprimiram os manifestantes, que protestavam, principalmente, contra os gastos para as obras da Copa do Mundo de 2014.
CENAS
Manifestantes do grupo Copa pra quem? entram em confronto com a polícia em frente ao estádio Mané Garrincha, em Brasília (DF); as imagens são de André Borges de 15 de junho de 2013
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Contra tudo
Na introdução do recém-lançado livro “Junho”, a socióloga Angela Alonso lembra que “a perplexidade ganhou escala na segunda-feira, 17. Foi quando os protestos ficaram, pela primeira vez, enormes, e a centrípeta de demandas, símbolos e atores aturdiu”.
Não havia dúvida: estávamos diante da maior onda de protestos políticos desde os caras-pintadas, em 1992, que exigiam o impeachment de Fernando Collor.
Eram protestos “contra tudo”, como anunciou a Folha em sua manchete: contra a corrupção, contra os gastos da Copa, contra o aumento das tarifas de transportes, contra a violência policial, contra a presidente Dilma Rousseff, contra o governador Geraldo Alckmin, contra o prefeito Fernando Haddad, contra, contra, contra…
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O poder sob ataque
A maioria das manifestações de 17 de junho foi pacífica, mas houve atos de vandalismo contra sedes do poder. No protesto em São Paulo, que reuniu pelo menos 65 mil pessoas, segundo o Datafolha, um grupo chegou a derrubar um portão do Palácio dos Bandeirantes, mas foi rechaçado pela PM.
Em Brasília, militantes tomaram o teto do Congresso Nacional e agrediram o então diretor-geral da Câmara, Sérgio Sampaio. No Rio, um grupo atacou a Assembleia Legislativa.
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Manifestantes tentam invadir o Palácio dos Bandeirantes, sede do governo de São Paulo Leandro Moraes/Uol/Folhapress
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Protesto ocupa a av. Brigadeiro Luís Antonio, na capital paulista Fabio Braga/Folhapress
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Policial espirra spray de pimenta contra um militante durante protesto em frente ao Congresso Nacional, em Brasília Pedro Ladeira/Folhapress
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Manifestantes queimam objetos em frente a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro Daniel Marenco/Folhapress
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Protesto no centro do Rio de Janeiro em 17 de junho Daniel Marenco/Folhapress
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Manifestantes invadem a área externa do Congresso Nacional Pedro Ladeira/Folhapress
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Ebulição paulistana
Quem esperava alguma calmaria depois de um dia de muitos transtornos em São Paulo se enganou.
Um ato na praça da Sé reuniu mais de 50 mil pessoas, segundo o Datafolha, e transcorreu de forma pacífica. Mais tarde, porém, manifestantes tentaram invadir a prefeitura, queimaram um carro da TV Record, destruíram agências bancárias e saquearam lojas. A PM demorou para agir.
Manifestantes na praça da Sé, no centro de São Paulo, na noite de 18 de junho - Moacyr Lopes Júnior 18.jun.2013/Folhapress
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Apoio aos protestos
Junho avançava, e o apoio de São Paulo às manifestações crescia. Pesquisa do Datafolha divulgada em 19 de junho mostrou que 77% dos paulistanos eram favoráveis aos protestos, um aumento de mais de 20 pontos percentuais em relação à pesquisa anterior, realizada seis dias antes.
O Datafolha também revelava que 51% acreditavam que a PM era mais violenta do que deveria ser.
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Aumento revogado
No dia 19 de junho, o MPL e outros movimentos populares obtiveram uma conquista histórica. Sob pressão depois de 13 dias de protestos, os governantes de São Paulo e do Rio cancelaram o aumento da tarifa de transporte.
Em São Paulo, o valor da passagem de ônibus, metrô e trem caiu de R$ 3,20 para R$ 3. No Rio, a tarifa de ônibus foi de R$ 2,95 para R$ 2,75.
Público no Anhangabaú, em São Paulo, para o jogo entre Brasil e México vaia Alckmin e Haddad, que anunciavam a revogação do aumento da tarifa - Eduardo Knapp 19.jun.2013/Folhapress
Angeli
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Contra o que você protesta?
Na mesma edição em que registrava a revogação dos aumentos, a Folha publicou um curioso painel, com opiniões de 33 brasileiros, mulheres e homens, idosos e jovens, moradores de cidades do país e também do exterior.
Sob o mote “Contra o que você protesta?”, as respostas eram as mais variadas: opunham-se à violência contra os indígenas e à PEC-37, que restringia o poder de investigação do Ministério Público; reclamavam, claro, do aumento das tarifas de transporte, mas também da corrupção, dos gastos com a Copa e dos governos em geral.
Ao final deste mosaico de comentários, o leitor poderia pensar: se não se restringem ao transporte público, os protestos continuarão mesmo com o recuo dos governantes em relação às tarifas. Sim, junho de 2013 ainda estava longe de chegar ao fim.
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Mais de 1 milhão
O ápice das chamadas Jornadas de Junho (expressão do filósofo Paulo Arantes) se deu no dia 20, quando as ruas foram tomadas por mais de 1 milhão de pessoas, segundo estimativas policiais.
“Dia dos maiores protestos em todo o Brasil”, anunciava a TV Folha. “Manifestações em mais de cem cidades”.
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Brasília sob fogo
Com uma batalha campal na Esplanada dos Ministérios, Brasília teve em 20 de junho de 2013 o dia mais violento da sua história até então. Essa marca só seria superada dez anos depois, em 8 de janeiro de 2023, com os ataques às sedes dos Três Poderes.
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De máscara, homem atira objeto em vidraça do Itamaraty durante protesto em Brasília - André Borges - 20.jun.2013/Folhapress
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Integrantes do movimento Acorda Brasília fazem protesto em frente ao Congresso Nacional - André Borges - 20.jun.2013/Folhapress
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Manifestantes são dispersados por policiais durante protesto em frente ao Congresso Nacional - Sérgio Lima - 20.jun.2013/Folhapress
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Dilma fala
Sob o impacto das maiores manifestações daquele mês, Dilma fez um pronunciamento de dez minutos na TV. Disse compreender as reivindicações, mas criticou o vandalismo.
Também prometeu falar com governadores e prefeitos das grandes cidades para fazer um "grande pacto em torno da melhoria dos serviços públicos".
Os manifestantes têm direito de questionar tudo e propor mudanças. Mas precisam fazer isso de forma pacífica e ordeira. [...] Precisamos oxigenar nosso sistema político, encontrar mecanismos que tornem nossas instituições mais transparentes, mais resistentes aos malfeitos e, acima de tudo, mais permeáveis à influência da sociedade
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Sem saída
Naquele mesmo dia 21, horas antes do pronunciamento de Dilma, uma série de protestos havia fechado 13 rodovias paulistas e bloqueado o acesso aos principais aeroportos do estado.
Tropa de Choque tenta conter manifestantes que bloqueiam a rodovia Castello Branco, na região de Barueri (Grande São Paulo) - Rodrigo Coca - 21.jun/Fotoarena/Folhapress
Trânsito foi bloqueado em diversas vias de São Paulo na sexta 21.jun.2013
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Respostas do Planalto
Após reuniões com governadores e prefeitos, Dilma apresentou no dia 24 “cinco pactos para o país”. Entraram no pacote investimentos em saúde, aumento dos gastos em transporte público e valorização da educação.
Como se pôde constatar nas semanas seguintes, algumas propostas foram adiante, como o programa Mais Médicos, lançado em julho de 2013. Outras, caso da reforma política, logo minguaram.
Gostaria de dizer à classe médica que não trata de medida hostil ou desrespeitosa, tendo em vista que temos dificuldades de encontrar médico para trabalhar nas áreas mais remotas [...] são falas em momentos diferentes, melhor indicar. Sempre oferecemos aos médicos brasileiros e depois chamaremos os estrangeiros. A saúde do cidadão deve prevalecer sobre qualquer interesse
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Novos protestos, novo recuo
Atos nas rodovias, até então mais concentrados no estado de São Paulo, ganharam projeção nacional. No dia 24 de junho, uma série de manifestações bloqueou estradas em todas as regiões do país.
Alckmin recuou outra vez ao anunciar que havia desistido de reajustar os pedágios nas rodovias paulistas. O aumento de 6,5%, acertado com as concessionárias, entraria em vigor em julho.
Além das estradas, a tensão dominava os arredores dos estádios. Houve protestos contra as obras para a Copa do Mundo, em 2014, antes e depois das principais partidas da Copa das Confederações.
Trânsito parado na rodovia Anchieta, no trecho de serra (sentido litoral) devido às manifestações na rodovia Cônego Domenico Rangoni - Moacyr Lopes Júnior - 24.jun.2013/Folhapress
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Queda de popularidade
Houve algumas conquistas a partir de demandas populares, mas as reações da classe política aos protestos ficaram muito aquém do que a população gostaria. A popularidade de Dilma desabou: caiu quase 30 pontos em 3 semanas. Alckmin e Haddad também foram afetados
O assunto foi tema de charge, assinada por Benett, e de debate na TV Folha.
Benett
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Ninguém tá entendendo nada
Junho chegou ao final com a seleção campeã da Copa das Confederações, os protestos em declínio e um saldo de muitas interrogações. Dez anos depois, junho de 2013 ainda é um fenômeno em debate. Mas algumas interpretações começam a se consolidar, como mostram os próximos capítulos.