Mundo virtual dificulta investigações e facilita aliciamento de jovens

Polícias Federal e Civil conduzem megaoperações para desbaratar quadrilhas em 24 estados

Gustavo Fioratti
São Paulo

As ofensivas da Polícia Federal e da Secretaria de Segurança Pública precisam vencer um obstáculo cada vez mais desafiador na luta contra a exploração sexual de menores: a internet.

A preferência hoje é por agenciamentos virtuais. “Com as mídias sociais, também vieram as facilidades para quem quer explorar essa atividade ilícita”, diz Yuri Giuseppe Castiglione, promotor da Infância e Juventude que trabalhou no Grupo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, Violência, Abuso e Exploração Sexual contra Crianças e Adolescentes do Ministério Público de São Paulo. 

“As mídias têm sido usadas não apenas para aliciar crianças e adolescentes como também para que elas cheguem aos interessados. Há comunidades [online] criadas para essa finalidade”, diz Castiglione.

“A tecnologia está posta, o criminoso se utiliza dessas ferramentas disponíveis para dar maior alcance às suas ações”, afirma Alessandro Barreto, coordenador do laboratório de inteligência cibernética da Secretaria Nacional de Segurança Pública. 

“Se migrou das ruas para a internet? Não há dados que afirmam isso. Mas o momento que vivemos é de virtualização do crime”, diz. 

A secretaria monitorou, durante quatro meses, suspeitos de disseminar conteúdo pornográfico infantil na web, no que está sendo considerada a maior ação do tipo no mundo. 

A Operação Luz na Infância 2 deu base para a Polícia Civil de 24 estados e do Distrito Federal cumprir 579 mandados de busca e apreensão na quinta passada (17), o que resultou em 251 prisões em flagrante.

No final de abril, a PF já havia realizado uma ofensiva em menor escala, mas que chamou a atenção pelo nível de barbárie envolvido.

Em sete estados (São Paulo, Minas, Rio, Goiás, Pernambuco, Maranhão e Acre), a operação Underground expediu dez mandados de prisão contra pessoas que guardavam filmes nos quais havia abuso sexual de bebês e de crianças com até 11 anos.

Segundo Otavio Margonari Russo, delegado da PF que coordenou a ação, parte dos abusadores era do convívio da família da vítima ou pertencia a ela. 

Ele conta de uma menina que engravidou e permaneceu sendo estuprada e filmada continuamente. Os vídeos eram vendidos ou trocados em fóruns da deep web —ou “internet profunda”, rede de sites de acesso restrito e que é muitas vezes o meio para o cometimento de crimes— com a participação de homens de todas as classes sociais, tanto brasileiros quanto estrangeiros.

“Sob a crença de estarem no anonimato, eles agiam livremente, de acordo com suas vontades”, diz Russo. E afirma que  aqueles que são presos por esse tipo de crime, em geral, expressam culpa e arrependimento. “Um deles chegou a me agradecer por ter sido preso.”

Para Alessandro Barreto, o que as inteligências dos estados mostraram é que “que essas instituições dão um passo importante para a virtualização também da atividade policial, no sentido de reprimir e prevenir a exploração sexual no ambiente cibernético”.

Para evitar flagrante, criminosos trocam as ruas por boates

Outro fator tem dificultado as investigações: o recrudescimento do combate e o medo de flagrantes está empurrado o crime para dentro de estabelecimentos.

Um exemplo é a região do Terminal de Cargas Fernão Dias, na região norte de São Paulo, onde a exploração sexual havia sido identificada por mapeamento policial, mas que hoje não apresenta nenhum movimento suspeito.

As vias no bairro da Luz, no centro, e o largo 13 de Maio, na região sul, foram apontados por policiais civis e militares como lugares de risco.

Seguindo a orientação das duas corporações, a reportagem escolhe uma boate próxima ao largo 13 de Maio para observar. Logo na entrada, há um aviso de que exploração sexual de menores é crime. 

Lá dentro, garotas com ar adolescente e que se declaram maiores. Tanto o serviço sexual das moças como as bebidas são registrados em uma comanda, e há quartos nos fundos do estabelecimento. Ao final, o cliente paga tudo o que for “consumido”.

Segundo uma mulher que frequenta o local, a casa exige que todas que trabalham lá mostrem o RG para a gerência —o que a reportagem não conseguiu comprovar durante cerca de uma hora, período em que meninas chegavam à boate.

Bem próximo ao Mercado Municipal, moças de aparência ainda mais jovem circulam sempre perto das portas de casas noturnas. 

Uma delas se aproxima do carro utilizado pela reportagem e, ao ser questionada sobre sua idade, diz ter 18 anos. Também informa que sua residência é em Atibaia, no interior paulista. Esse é um indício de minoridade, segundo G., prostituta de uma casa vizinha: muitas vêm de fora por medo de atuar onde podem ser reconhecidas. 

No interior de uma das casas (em todas é permitido fumar, sinal da ausência de policiamento e fiscalização), uma menina diz ser de Santos; outra, de Campinas, conta que odeia a atividade, mas não vê outra forma de levar a vida.

Os clientes, observados durante duas horas, não pedem para ver a identidade.

Essas meninas, às vezes, caem na rede tentando escapar de uma realidade familiar igualmente trágica. É o caso de M.G.S., que, aos 17, aceitou trabalho em uma boate em Lençóis Paulistas para fugir da violência do ex-marido, segundo sua denúncia.

No processo que condenou os acusados em segunda instância, está descrito que M.G.S. trabalhava no bar de J.A.S. e C.F.B.A, onde cobrava R$ 100 por programa. Os donos da casa recebiam R$ 20 pelo quarto. 

Mas M.G.S. se endividou com os proprietários, que passaram a trancá-la dentro de um cômodo, “motivo pelo qual [a vítima] decidiu contatar a polícia por telefone”, diz documento no Tribunal de Justiça de São Paulo. 

O círculo social dos vulneráveis poderia ser um escudo. Mas “muitas vezes quem tem a função de impedir que aquilo aconteça faz vista grossa, sabendo que por trás há o crime organizado”, diz Castiglione. 

“Mesmo quando a pessoa não concorda com aquilo, ela sabe que pode haver retaliação. A população tem medo de denunciar”, conclui.

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.